O conceito
de poder em Foucault tem sido objeto de grandes controvérsias, as quais, não
raro, pecam pela errônea
compreensão dos objetivos do filósofo e do(s) significado(s) que ele empresta à
palavra poder. É afirmado com relativa freqüência que as obras Vigiar e Punir e
Vontade de Saber marcam uma mudança de curso, objeto e método por parte de
Foucault. Penso que apontar a continuidade essencial do projeto filosófico
foucaultiano é uma tarefa importante para a compreensão do quase enigmático
conceito de poder presente em suas obras. Vigiar e Punir é um livro que
marca uma nova orientação nas pesquisas de Foucault, muito embora ainda
se deva falar de um mesmo projeto filosófico.
O poder
disciplinar descrito em Vigiar e Punir não se identifica a uma instituição
política ou aparelho de Estado. Trata-se de um tipo de configuração de poder
que perpassa as instituições e discursos, como uma espécie de tecnologia. O
poder não tem essência, é apenas uma relação. Por tal motivo, ele não deve ser
concebido como sendo fundamentalmente repressivo nem confundido com a
violência. “Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre coisas (...) Uma
relação de poder, pelo contrário, se articula sobre dois elementos que lhe são
indispensáveis para ser justamente uma relação de poder: que o ‘outro’ (aquele
sobre quem ela se exerce) seja reconhecido e mantido até o fim como sujeito de
ação; e que se abra diante da relação de poder todo um campo de respostas,
reações, efeitos, invenções possíveis” (Foucault, 1984, p. 313). Neste sentido,
o exercício do poder consiste num conjunto “de ação sobre ações possíveis”, do
tipo da incitação, indução, facilitação, limitação, impedimento, etc.
A
atualização das redes de relações de poder que criam e estabilizam os diagramas
constituem um processo de estabilização (Foucault, 1985, p. 67 e 90). Esta
consiste em traçar uma linha geral de força que permite ligar as
singularidades, homogeneizá-las, colocá-las em série e fazê-las convergir
(Foucault, 1985, p. 90). As instituições como a família, o Estado, a Religião,
a produção, são os fatores integrantes. Tais instituições não são essências, mas
sim práticas, mecanismos operatórios.
É neste
sentido que para Foucault não há o Estado, mas sim práticas de “estatização”
que variam na história (Foucault, 1984, p. 318). Deste modo, o Estado supõe as
relações de poder, ao invés de ser a sua origem. O Estado seria uma espécie de
curva que reuniria uma série de pontos singulares; neste sentido ele seria uma
regra, uma regularidade. O diagrama é a própria emissão de singularidades,
enquanto a instituição, a curva estabilizadora. O poder soberano (não o poder
do soberano) seria uma instância capaz de explicar alguns comportamentos
coletivos dotados de finalidade e sentido.
A norma
funciona também como medida comum que permite que cada um pense o seu valor,
sua identidade e lugar
respectivo no interior da sociedade. Neste sentido ela “socializa o juízo
(jugement) e as identidades”. A norma constitui-se num “ponto fictício onde
aquilo que vive disperso na sociedade pode se ver como um”. Ela é o espelho das
solidariedades, funcionando como um princípio de totalização, o qual assume um
caráter muito específico. A norma é, deste modo, o princípio regulador das
práticas que constituem o Estado (as práticas de governo (Foucault, 1984, p.
314) e estatização).
Providencialista,
esta nova forma de poder pastoral (Foucault, 1984, p. 305). Não se trata de
encontrar um interesse ou um bem geral e comum universalizável, mas antes de
constituir-se numa sociedade que concretamente se apresenta dividida por
elementos por vezes antagonistas e somente por vezes solidários, um lugar onde
se pode representar o fato da solidariedade. Nesta dimensão, a norma como
medida comum opera como um indicador do estado e identidade de cada indivíduo
ou grupo e como instrumento do jogo social. Por fim, a norma seria também a
forma moderna do vínculo social, na medida em que ela define as condições do
consenso (o qual substitui a função do contrato social na sociedade liberal).
Ela serve de referência para uma negociação que ela torna permanente. Ela é
também aquilo que a negociação deve corrigir. Instaura uma desigualdade para
logo retificá-la. Ela serve para reinserir os privilégios no contexto da
normalidade.
A norma
designa sempre uma medida que serve para avaliar o que está conforme a
regra e o que a distingue; não está mais ligada à ideia de retidão, esquadro,
mas de “mediana” - a norma torna-se agora o parâmetro para opor
normal/anormal, normal/patológico.
Vigiar e
punir define as disciplinas como “poder da norma”, desempenhando uma das
principais tecnologias de poder das sociedades modernas. A difusão da sociedade
disciplinar tem operado segundo três grandes modalidades: 1) inversão funcional
das disciplinas, ocorrendo a passagem da disciplina compacta, voltada para
funções negativas e mecânicas; 2) proliferação dos mecanismos disciplinares;
enquanto os estabelecimentos de disciplina se multiplicam, seus mecanismos têm
a tendência de se desinstitucionalizar, sair das fronteiras fechadas onde
funcionam e circulam em estado livre; toda instituição torna-se suscetível de
utilizar o esquema disciplinar, não se dirigido somente aos que ela pune, mas
pondo-se ao serviço do bem de todos, de toda produção socialmente útil; 3)
estatização dos mecanismos de disciplina, funcionando através de uma polícia
centralizada, com a missão de uma vigilância permanente, exaustiva,
onipresente, capaz de tornar tudo visível. A generalização do esquema e das
técnicas disciplinares tornou possível a prisão, assim como as escolas,
fábricas, casernas, hospitais.
Com isso,
Foucault não quer dizer que a sociedade disciplinar seja uma sociedade
generalizada de confinamento; ao contrário, sua difusão, longe de cindir ou
compartimentar, homogeneíza o espaço social. O importante na ideia de sociedade disciplinar é a própria ideia de
sociedade: as disciplinas fazem a sociedade, criam uma linguagem comum entre as
instituições.
Fonte:
DELEUZE, Gilles. Foucault. Paris, Ed. Minuit, 1986.
fflch.usp.br/sociologia/temposocial
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro, Ed. Cadernos da PUC/RJ, 1974.
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_______. Nietzsche, Freud e Marx. Porto, Ed. Anagrama, 1980.
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_______. Structuralism and post-structuralism. An interview with Michel Foucault. Telos, Spring, nº 55, 1983.
_______. Deux essais sur le sujet et le pouvoir. In: DREYFUS, L. H. & RABINOW, P. Michel Foucault. Un parcours
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_______. Vontade de saber. 8ª ed. Rio de Janeiro, Graal, 1985.
_______. Arqueologia do saber. Petrópolis/Rio de Janeiro, Vozes/Forense Universitária, 1986.
_______. Vigiar e punir. 5ª ed. Petrópolis, Vozes, 1987.
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