Para Bauman (2001) o momento presente pode ser caracterizado como a era da liquefação do projeto moderno, a modernidade líquida. Desde o século XIX, já com Marx e Engels, mas também com muitos outros pensadores, a modernidade era tida como um processo social, econômico, político e cultural amplo que ao longo de sua marcha histórica derretia todos os sólidos existentes. O grupo de parentesco, a comunidade tradicional fechada e isolada, os laços e obrigações sociais fundados na afetividade e na tradição, a religião, dentre outros, foram, de certa forma, “derretidos” pelo progresso moderno.
O momento atual da modernidade é caracterizado justamente pela dissolução das
forças ordenadoras que permitiam ativamente reenraizar e reencaixar os antigos sólidos em
novas formas sociais modernas. Os padrões sociais de referência que balizavam a ordem
social da modernidade tornaram-se liquefeitos, a classe, o Estado-nação, a cidadania,
juntamente com a livre expansão global das forças de mercado e o retrocesso da veia
totalitária da ordem moderna libertaram os indivíduos de seus grilhões atados a uma ordem
rígida e racional-instrumental. Conforme Bauman:
O “derretimento dos sólidos”, traço permanente da modernidade, adquiriu, portanto,
um novo sentido, e, mais que tudo, foi redirecionado a um novo alvo, e um dos
principais efeitos desse redirecionamento foi a dissolução das forças que poderiam
ter mantido a questão da ordem e do sistema na agenda política. Os sólidos que estão
para ser lançados no cadinho e os que estão derretendo neste momento, o momento
da modernidade fluida, são os elos que entrelaçam as escolhas individuais em
projetos e ações coletivas – os padrões de comunicação e coordenação entre as
políticas de vida conduzidas individualmente, de um lado, e as ações políticas de
coletividades humanas, de outro (BAUMAN, 2001, p. 12).
Para Bauman (2001) a modernidade entrou numa fase aguda de privatização e
individualização que desvinculou os poderes de derretimentos dos sólidos da tradição de seu
reenraizamento na ordem moderna, e, dessa forma, possibilitou uma cisão entre a construção
individual da vida, a “política-vida” e a construção política da sociedade. O fenômeno mais
aparente dessa desvinculação é o processo de desregulamentação política, social e econômica
que se manifesta na expansão livre dos mercados mundiais, no desengajamento coletivo e
esvaziamento do espaço público.
Na modernidade líquida os indivíduos não possuem mais padrões de referência, nem
códigos sociais e culturais que lhes possibilitassem, ao mesmo tempo, construir sua vida e se
inserir dentro das condições de classe e cidadão. Chega-se no entender de Bauman (2001) a
era da comparabilidade universal, onde os indivíduos não possuem mais lugares pré-
estabelecidos no mundo onde poderiam se situar, mas devem lutar livremente por sua própria
conta e risco para se inserir numa sociedade cada vez mais seletiva econômica e socialmente.
Esse processo simbólico de liquefação dos valores mais elevados da condição humana manifesta- se em diversas perspectivas de nossa vida em sociedade, tendo como característica comum a incapacidade de nos relacionarmos com a pessoa do "outro" de maneira plena, compreendendo assim a sua subjetividade e singularidade. Tendemos sempre a valorar a figura do "outro" tal como ela se apresenta diante de nós e não nela mesma, decorrendo daí os preconceitos, as diversas expressões de intolerâncias, em suma, a incompreensão da subjetividade do "outro", que, infelizmente, progressivamente perde a sua própria natureza humana, singular, única, para se tornar uma mera coisa com a qual nos relacionamos de maneira fria, egoísta e superficial.
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O paradoxo é que sociedades como a nossa, que a cada dia tornam-se mais ricas,
também tem a cada dia pessoas menos felizes. A riqueza parece não ser o principal motivo da
felicidade, justamente parece ocorrer o contrário, a correlação entre riqueza e felicidade é
inversa. O crescimento econômico acelerado parece não provocar um surto concomitante de
felicidade, mas ao inverso, é a taxa de criminalidade que é crescente e uma ascendente
sensação de incerteza quanto ao destino de cada um.
Os bens necessários a uma vida feliz não podem ser comprados com dinheiro. Não se
compra no shopping com cartão de crédito, o amor, a amizade, os prazeres da vida doméstica,
o companheirismo, a autoestima por um bom trabalho, o respeito mútuo etc. Tais bens,
intangíveis por natureza, não podem ser adquiridos no mercado, por isso a felicidade não pode
ser comprada.
No entanto, os mercados vendem a felicidade, ou mais precisamente, vendem outros
bens que podem substituir àqueles intangíveis e não-negociáveis.
Uma vez que os bens capazes de tornar a vida mais feliz começam a se afastar dos
domínios não-monetários para o mercado de mercadorias, não há como os deter; o
movimento tende a desenvolver um impulso próprio e se torna autopropulsor e autoacelerador,
reduzindo ainda mais o suprimento de bens que, pela sua natureza, só
podem ser produzidos pessoalmente e só podem florescer em ambientes de relações
humanas intensas e íntimas (BAUMAN, 2009, p. 16).
Um dos efeitos de manter a busca da felicidade atrelada ao consumo de mercadorias é
tornar essa busca interminável e a felicidade sempre inalcançada. Se não se pode chegar a um
estado de felicidade duradouro, então a solução é continuar comprando, com a esperança de
que a próxima linha de produtos superfáceis de usar ou a nova tendência outono-inverno
redima os incansáveis buscadores de felicidade. A grande cartada dos mercados foi
transformar o sonho da felicidade de uma vida plena e satisfatória em uma busca incessante
de “meios” para se chegar a isso.
Os principais meios para atingir uma vida feliz são mercadorias, mas não apenas
objetos que servem ao consumo. Quem busca uma marca, uma grife, um logo, deseja o
reconhecimento que isso irá lhe proporcionar perante os outros.
[...] ter e apresentar em público coisas que portam a marca e/ou logo certos e foram
obtidas na loja certa é basicamente uma questão de adquirir e manter a posição
social que eles detêm ou a que aspiram. A posição social nada significa a menos que
tenha sido socialmente reconhecida – ou seja, a menos que a pessoa em questão
seja aprovada pelo tipo certo de “sociedade” (cada categoria de posição social tem
seus próprios códigos jurídicos e seus próprios juízes) como um membro digno e
legítimo – como “um de nós” (BAUMAN, 2009, p. 21).
Marcas e grifes são palavras de uma “linguagem de reconhecimento” (BAUMAN,
2009, p. 21). Essas são as principais preocupações para os buscadores da felicidade na época
líquido-moderna.
Essa característica da busca frenética da felicidade através do reconhecimento social
tem impactos importantes na identidade. Na modernidade sólida, as identidades eram sim
autoconstruídas, no entanto, eram também feitas para durar. No caso da experiência dos
indivíduos na versão líquida da modernidade, a identidade é continuamente montada e
desmontada. E tem de ser assim, visto que a busca fugaz da felicidade exige adaptabilidade e
mudança constante, portanto prender-se a uma “identidade” pode ser o desfecho final de um
destino infeliz.
Fonte
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
_____. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2003.
_____. Arte da vida. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/percsoc/article/view/2344/2197
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