segunda-feira, 28 de setembro de 2015

O pensamento de Zygmunt Bauman



Para Bauman (2001) o momento presente pode ser caracterizado como a era da liquefação do projeto moderno, a modernidade líquida. Desde o século XIX, já com Marx e Engels, mas também com muitos outros pensadores, a modernidade era tida como um processo social, econômico, político e cultural amplo que ao longo de sua marcha histórica derretia todos os sólidos existentes. O grupo de parentesco, a comunidade tradicional fechada e isolada, os laços e obrigações sociais fundados na afetividade e na tradição, a religião, dentre outros, foram, de certa forma, “derretidos” pelo progresso moderno. 

O momento atual da modernidade é caracterizado justamente pela dissolução das forças ordenadoras que permitiam ativamente reenraizar e reencaixar os antigos sólidos em novas formas sociais modernas. Os padrões sociais de referência que balizavam a ordem social da modernidade tornaram-se liquefeitos, a classe, o Estado-nação, a cidadania, juntamente com a livre expansão global das forças de mercado e o retrocesso da veia totalitária da ordem moderna libertaram os indivíduos de seus grilhões atados a uma ordem rígida e racional-instrumental. Conforme Bauman: 

O “derretimento dos sólidos”, traço permanente da modernidade, adquiriu, portanto, um novo sentido, e, mais que tudo, foi redirecionado a um novo alvo, e um dos principais efeitos desse redirecionamento foi a dissolução das forças que poderiam ter mantido a questão da ordem e do sistema na agenda política. Os sólidos que estão para ser lançados no cadinho e os que estão derretendo neste momento, o momento da modernidade fluida, são os elos que entrelaçam as escolhas individuais em projetos e ações coletivas – os padrões de comunicação e coordenação entre as políticas de vida conduzidas individualmente, de um lado, e as ações políticas de coletividades humanas, de outro (BAUMAN, 2001, p. 12).

Para Bauman (2001) a modernidade entrou numa fase aguda de privatização e individualização que desvinculou os poderes de derretimentos dos sólidos da tradição de seu reenraizamento na ordem moderna, e, dessa forma, possibilitou uma cisão entre a construção individual da vida, a “política-vida” e a construção política da sociedade. O fenômeno mais aparente dessa desvinculação é o processo de desregulamentação política, social e econômica que se manifesta na expansão livre dos mercados mundiais, no desengajamento coletivo e esvaziamento do espaço público. Na modernidade líquida os indivíduos não possuem mais padrões de referência, nem códigos sociais e culturais que lhes possibilitassem, ao mesmo tempo, construir sua vida e se inserir dentro das condições de classe e cidadão. Chega-se no entender de Bauman (2001) a era da comparabilidade universal, onde os indivíduos não possuem mais lugares pré- estabelecidos no mundo onde poderiam se situar, mas devem lutar livremente por sua própria conta e risco para se inserir numa sociedade cada vez mais seletiva econômica e socialmente.   

Esse processo simbólico de liquefação dos valores mais elevados da condição humana manifesta- se em diversas perspectivas de nossa vida em sociedade, tendo como característica comum a incapacidade de nos relacionarmos com a pessoa do "outro" de maneira plena, compreendendo assim a sua subjetividade e singularidade. Tendemos sempre a valorar a figura do "outro" tal como ela se apresenta diante de nós e não nela mesma, decorrendo daí os preconceitos, as diversas expressões de intolerâncias, em suma, a incompreensão da subjetividade do "outro", que, infelizmente, progressivamente perde a sua própria natureza humana, singular, única, para se tornar uma mera coisa com a qual nos relacionamos de maneira fria, egoísta e superficial.

O poder na era da liquidez não é mais aquele que se materializava na disciplina da fábrica fordista, na torre de controle panóptica, na administração pública. O poder agora é extraterritorial, o seu objetivo não é mais impor à sociedade um ordenamento rígido, mas simplesmente, através de uma aceleração compulsiva do tempo e do domínio total do espaço, expor todos os lugares do planeta à livre ação da globalização econômica do mercado capitalista. A elite global não tem mais o interesse de governar a partir de um território, pois ela é cada vez mais desterritorializada e inacessível, vivendo em fortalezas fortificadas por sistemas de segurança high-tech, as quais são meras paragens de sua contínua mobilidade espacial. Os indivíduos comuns, a massa de pessoas que compõem o restante da sociedade, são submetidos a um Estado ordenador total na modernidade sólida. Eles poderiam ter a liberdade de construir suas vidas individualmente, mas os parâmetros sociais estavam dados, essa construção somente poderia ser feita a partir deles. No momento da modernidade líquida, os indivíduos foram justamente “condenados” a serem livres. A segurança da ordem social, dada na modernidade sólida, que poderia garantir um “seguro coletivo contra os infortúnios individuais” se liquefez jogando aos indivíduos a solitária responsabilidade pelos seus problemas. A insegurança em relação ao futuro decorre justamente do fato de que o poder moderno não é mais público (voltado para manutenção e segurança do mundo público), mas é privatizado, contingente e, para os indivíduos, fugaz.  

O paradoxo é que sociedades como a nossa, que a cada dia tornam-se mais ricas, também tem a cada dia pessoas menos felizes. A riqueza parece não ser o principal motivo da felicidade, justamente parece ocorrer o contrário, a correlação entre riqueza e felicidade é inversa. O crescimento econômico acelerado parece não provocar um surto concomitante de felicidade, mas ao inverso, é a taxa de criminalidade que é crescente e uma ascendente sensação de incerteza quanto ao destino de cada um. Os bens necessários a uma vida feliz não podem ser comprados com dinheiro. Não se compra no shopping com cartão de crédito, o amor, a amizade, os prazeres da vida doméstica, o companheirismo, a autoestima por um bom trabalho, o respeito mútuo etc. Tais bens, intangíveis por natureza, não podem ser adquiridos no mercado, por isso a felicidade não pode ser comprada. 

No entanto, os mercados vendem a felicidade, ou mais precisamente, vendem outros bens que podem substituir àqueles intangíveis e não-negociáveis. 

Uma vez que os bens capazes de tornar a vida mais feliz começam a se afastar dos domínios não-monetários para o mercado de mercadorias, não há como os deter; o movimento tende a desenvolver um impulso próprio e se torna autopropulsor e autoacelerador, reduzindo ainda mais o suprimento de bens que, pela sua natureza, só podem ser produzidos pessoalmente e só podem florescer em ambientes de relações humanas intensas e íntimas (BAUMAN, 2009, p. 16). 

Um dos efeitos de manter a busca da felicidade atrelada ao consumo de mercadorias é tornar essa busca interminável e a felicidade sempre inalcançada. Se não se pode chegar a um estado de felicidade duradouro, então a solução é continuar comprando, com a esperança de que a próxima linha de produtos superfáceis de usar ou a nova tendência outono-inverno redima os incansáveis buscadores de felicidade. A grande cartada dos mercados foi transformar o sonho da felicidade de uma vida plena e satisfatória em uma busca incessante de “meios” para se chegar a isso. Os principais meios para atingir uma vida feliz são mercadorias, mas não apenas objetos que servem ao consumo. Quem busca uma marca, uma grife, um logo, deseja o reconhecimento que isso irá lhe proporcionar perante os outros. 

[...] ter e apresentar em público coisas que portam a marca e/ou logo certos e foram obtidas na loja certa é basicamente uma questão de adquirir e manter a posição social que eles detêm ou a que aspiram. A posição social nada significa a menos que tenha sido socialmente reconhecida – ou seja, a menos que a pessoa em questão seja aprovada pelo tipo certo de “sociedade” (cada categoria de posição social tem seus próprios códigos jurídicos e seus próprios juízes) como um membro digno e legítimo – como “um de nós” (BAUMAN, 2009, p. 21). 

Marcas e grifes são palavras de uma “linguagem de reconhecimento” (BAUMAN, 2009, p. 21). Essas são as principais preocupações para os buscadores da felicidade na época líquido-moderna. Essa característica da busca frenética da felicidade através do reconhecimento social tem impactos importantes na identidade. Na modernidade sólida, as identidades eram sim autoconstruídas, no entanto, eram também feitas para durar. No caso da experiência dos indivíduos na versão líquida da modernidade, a identidade é continuamente montada e desmontada. E tem de ser assim, visto que a busca fugaz da felicidade exige adaptabilidade e mudança constante, portanto prender-se a uma “identidade” pode ser o desfecho final de um destino infeliz. 

Fonte

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. 

_____. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. 

_____. Arte da vida. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. 

periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/percsoc/article/view/2344/2197

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Formação do Brasil Contemporâneo - Caio Prado Jr.


Formação do Brasil contemporâneo é dos textos mais influentes sobre as relações entre nação e colônia no processo histórico que originou o Brasil. E é a ele, sobretudo, que Caio Prado Jr. deve seu lugar como grande intérprete do país. Marxista e militante ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), o autor não via, porém, o materialismo histórico como um conjunto de fórmulas a serem aplicadas, sem mediações históricas e analíticas, a qualquer realidade. Isso o levou, aguçado por uma grande sensibilidade em relação ao Brasil, desenvolvida também nas muitas viagens que fez pelo país e pelo gosto em fotografá-lo, a promover uma verdadeira “nacionalização do marxismo”.


“Salvo em alguns setores do país, ainda conservam nossas relações sociais, em particular as de classe, um acentuado cunho colonial. (…) Quem percorre o Brasil de hoje fica muitas vezes surpreendido com aspectos que se imagina existirem nos nossos dias unicamente em livros de história.”

Surpreendentemente (ou não), as palavras acima foram publicadas pela primeira vez 72 anos atrás. Caio Prado Jr. descreveu, em 1942, um Brasil que parece recém saído da situação de colônia escravista, onde o trabalho livre ainda é desorganizado, a economia interna ainda é quase inexistente e a sociedade ainda não aprendeu a lidar com a falta de escravos sociais. Isso tudo, tristemente, continua desconfortavelmente atual hoje em dia, quase duzentos anos depois do nosso “grito de independência”. Formação do Brasil contemporâneo é um clássico do pensamento social e da historiografia brasileira que vem mobilizando estudiosos e atores políticos, seja para aceitar suas teses, problematizá-las ou mesmo rejeitá-las. Como poucos, o livro conseguiu formar nossa visão das origens coloniais do Brasil e do seu legado à nação. Divergindo daqueles que entendiam o período colonial em termos equivalentes ao feudalismo na Europa, Caio Prado Jr. o situa no processo de expansão ultramarina europeia resultante do capitalismo mercantil. Explicação tão bem-sucedida que dificilmente alguém acreditaria hoje num passado feudal brasileiro.

Caio Prado Jr. deixa bem claro que fomos colonizados somente para facilitar os interesses mercantilistas, transformando o país num imenso galpão fornecedor de riquezas para os outros e que isso nos afeta até hoje (1942 para ele, 2014 para nós). Por estarmos na zona tropical, nossa sociedade foi inventada, diferente da tradicional sociedade colonial temperada, parecida o suficiente com a colonizadora a ponto de ser quase uma extensão desta. Aqui fomos diferentes desde o primeiro dia. A ocupação do interior, por exemplo, foi apenas uma necessidade num mundo sedento por monoculturas, tanto agrícolas quanto pecuárias.

Mas este livro é um clássico também pelo que nos permite entender de certos desafios tenazes, ainda hoje abertos à sociedade. Sua tese fundamental é a de “sentido da colonização”, que expressa a reiteração, mesmo após a nossa independência política, do papel do Brasil como fornecedor de produtos primários demandados pelo mercado externo. Apesar das mudanças em curso desde então, e das novas configurações da cada vez mais complexa dialética entre centro e periferia, talvez bastasse constatar a importância no Brasil de hoje das commodities agrícolas e minerais para sugerir a atualidade da análise central do livro.


Fonte

companhiadasletras.com.br

http://scienceblogs.com.br/uoleo