sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Até quando?

Estudantes chegam na escola para o primeiro dia de aula e nem suspeitam que os colegas de classe são, realmente, atores contratados para um projeto científico. A aula começa e, alguns minutos depois, alguém de fora grita que há um incêndio e, logo em seguida, o alarme é acionado. Os atores continuam inertes, fingindo que nada acontece e continuam no local. Assim como os atores, as “cobaias” permanecem inertes: “estão contaminadas pelo clima de que nada de grave está acontecendo.”
Em outro contexto, com outras “cobaias”, o mesmo alarme de “incêndio” é aplicado. Agora, os atores entram em pânico, que logo influencia as “cobaias”. E todos, desesperados, abandonam desesperadamente seus lápis e fogem do “fogo”.
Ao lembrar dessa experiência fui conduzido a pensar sobre  a noção de “comportamento de manada” (que acabei tendo que estudar em alguns artigos acadêmicos) e do exemplo da escritora sul-africana Ingrid Jonker, que viveu na África do Sul dos anos 1960, época em que a opressão do Apartheid era ainda ocultada pela harmonia vendida por quem tentava manter a ordem vigente. “Ainda que a ordem vigente fosse separar brancos de negros, e manter estes à míngua (e à distância) de toda sorte de direitos.”
Se tivesse seguido a “manada”, na vida e na escrita, possivelmente Ingrid não tivesse sido homenageada por Nelson Mandela, como uma das grandes referências da libertação da África do Sul. Ela não precisou pegar em armas, mas transgredir, por meio da literatura, as jaulas que a prendiam em sua época. Na visão de Ingrid, autora praticamente desconhecida no Brasil, esta era uma missão dupla: seu pai era um político conservador que via a exclusão dos negros como algo necessário. Era também responsável pelo departamento de censura do governo. Escrever para mudar o mundo não era mais desafiador para ela do que convencer o pai sobre as atrocidades de sua época. Seu primeiro livro é dedicado ao pai, que a rejeita. “Para ele, a filha era sua própria negação.”
Seriam apenas palavras contra um país tomado por leis desumanas? Absolutamente, não! Logo, as palavras se espalharam pelos guetos, grupos de intelectuais, e pelo mundo que começava a enxergar a realidade. Alguém ali avisava que um país estava desmoronando.
Lembrei de uma formatura, da minha infância. Me recordo de ter jurado algo como: “eu prometo ser honesto, honrar os mais velhos, manter a ordem e o respeito, cuidar dos mais novos” e uma sequência de blábláblá que toda a classe repetia, como cordeirinhos. Apenas crianças, mas que assumiam o compromisso de que, “acontecesse o que acontecesse, jamais romperíamos a ordem que nos acabava de ser entregue.”
A pura reprodução de seres dóceis, “incapazes” de realizar mudanças em seu próprio tempo e espaço (o “pacato cidadão” do Skank). Tudo o que é contrário é rotulado de desobediência ou anarquia.
Uma garota chamada Julia me disse certa vez que “uma sutil censura se impõe quando você expressa sua opinião sobre alguma coisa mais profunda. Todos olham para o chão, ou torto ou simplesmente se calam. Se por um lado existe o imbecil politicamente incorreto, por outro há uma legião de hipócritas politicamente corretos”, e ela tem razão. Apesar disso, eu não preciso de uma “manada” para agir. Não preciso do “exemplo” dos “atores” sociais para poder correr quando tudo estiver pegando fogo. Eu nem preciso da droga do alarme de incêndio. Se a minha “arma” for uma caneta e um papel eu vou procurar usar da melhor forma possível e tentarei “convencer”, com muito amor, o meu pai a questionar a sociedade em que vivemos.

Não me rotulo como um idealista, revolucionário ou qualquer coisa do tipo. Não preciso disso. Sou apenas um cara inconformado com certas coisas. E que, apesar dessas “certas coisas” erradas, não desistiu de sonhar com uma humanidade menos desumana. Concordo com aquilo que canta “O Pensador, Gabriel”: “Muda que quando a gente muda o mundo muda com a gente. A gente muda o mundo na mudança da mente. E quando a mente muda a gente anda pra frente; e quando a gente manda ninguém manda na gente! Na mudança de atitude não há mal que não se mude nem doença sem cura. Na mudança de postura a gente fica mais seguro. Na mudança do presente a gente molda o futuro!” Um pouco de poesia urbana é sempre bom pra ajudar a gente a pensar diferente da "manada".

*Indico o filme "Borboletas Negras",  dirigido por Paula von der Oest, que conta a história de Ingrid Jonker (interpretada por Carice van Houten).

sábado, 5 de outubro de 2013

Humanos "direitos"

De fato, como escreveu Matheus Pichonelli para a Carta Capital, a cena do Capitão Nascimento, com o coturno na garganta do traficante “Baiano”, entregando a escopeta nas mãos do Soldado Mathias estabelecendo a execução do bandido, teve como efeito a euforia generalizada nas salas de cinema espalhadas pelo país. Como num estádio lotado em final de campeonato, “houve quem se levantasse e aplaudisse a cena de pé, algo inusitado para uma sessão de cinema”. O mesmo país que se colocava de pé pelos direitos humanos para humanos direitos estava de braços cruzados.

O diretor da produção cinematográfica, José Padilha, precisou “desenhar”, em Tropa de Elite 2, “que aquela escopeta estava voltada, na verdade, para o rosto do povo brasileiro. Entretanto, parece que mesmo diante do “desenho” o povo se demonstrou incapaz de refletir e “entender que a tortura, os sacos plásticos e a justiça por determinação própria eram a condenação, e não a redenção, de um país de tragédias cotidianas”. Nas duas produções, todos estavam, de alguma forma, envolvidos na criminalidade – corruptos e corruptores, produtores e consumidores, eleitos e eleitores, eu e você – mas só alguns eram executados.

O saco de tortura, a bofetada na cara, o tiro (pra matar ou intimidar); todos são símbolos da violação dos nossos direitos no cotidiano. Respire esse oxigênio cada vez mais irrespirável, transite pelas vias de trânsito intransitáveis, vá às compras e seja assaltado (pelos bandidos de ofício, ou pelos disfarçados), se alimente desse “lixo” caro que é colocado nas prateleiras dos supermercados. Seja programado pela mídia que ao invés de informar, tem mais compromisso com o deformar. O nome disso é tortura!

“O apelo à tortura como consequência da segurança é, portanto, a confissão e a aceitação de uma incapacidade ancestral.” Em vez de segurança, o que ela produz é pânico: aceitamos que as autoridades se comportem não como agentes públicos a nos proteger de símios ensandecidos com ossos na mão, mas exatamente igual aos animais retratados no filme e dentro da nossa rotina.

“Nesses termos, o estado completo de vulnerabilidade está criado (precisamente em 14 de julho de 2013, foi a vez de Amarildo). Amanhã pode ser eu. Ou você. Enquanto aplaudimos as soluções arbitrárias, que aniquilam tanto o bandido como o inocente, é a sorte, e não a lei, o elemento a impedir que um animal armado (fardado ou não) com arma na mão, pelo simples fato de acordar num belo dia de mau humor, coloque nossas cabeças em um saco plástico e nos sufoque até a morte.” Eu me refiro ao Estado, enquanto produtor de “malignidade”, não aos cidadãos que fazem parte dele. Eu me refiro ao empresário “predador”, não aos solidários. Eu me refiro ao comunicador imbecil (sem aspas), não ao comunicador social. Eu me refiro ao vândalo, não ao cidadão que luta pelos seus direitos.  Estou falando de mim e estou falando de você!

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Proletários do mundo globalizado


Pouco tempo depois da aparente avalanche de cidadania dentro dos protestos de junho, a política brasileira flerta com tudo o que há de mais mesquinho e nefasto. O de sempre. Manobras demagógicas, falso moralismo, megalomania e a velha politicagem de botequim.
Marx foi capaz de ver o proletário como o protagonista das possíveis transformações sobre uma lógica opressiva e perversa que manipula as massas, como peças de uma grande engrenagem capitalista.

Proletários eram os despossuídos de bens e desprovidos de cidadania. Guerreiros capazes de construir uma “identidade” a partir da “não identidade” e que, na visão de Marx, se uniriam por um ideal comum, justamente por não possuírem ideal algum. A opressão surge como a força unificadora dessa gente sem partido.

Evidentemente, como salienta Vladimir Safatle: 

“É claro que todo acontecimento é acompanhado de perto por uma espécie de simulacro que visa anulá-lo, repetindo seu nome em um horizonte no qual sua força performativa de transformação se perde. A ascensão da força transformadora do proletariado foi seguida de perto pelo “proletariado” como seu próprio antídoto. Foi uma certa figura do operariado alemão que levou Hitler ao poder.” (Carta Capital – Os “sem lugar” na atualidade).

Os “proletários”, que costumam acompanhar os proletários, logo desferem os seus golpes ideológico-partidários na tentativa de determinar uma bandeira para um movimento caracterizado por uma gente que nem ao menos se enxerga dotada de identidade.

Várias partes do planeta, a exemplo do Oriente Médio, continuam respirando a luta por dignidade e emancipação. No entanto, além dos “proletários”, que acompanham os verdadeiros inconformados de perto, ainda temos outra praga: as autoridades políticas que se mostram “parte” de um movimento legítimo e popular. No plano nacional, os personagens são bem conhecidos: a falsa esquerda, a pseudo-direita, uma gama de aproveitadores e aspirantes à cargos públicos. No plano global, o interesse pela manutenção da ordem imperialista sempre encontra uma maneira de conduzir a construção dos modelos “democráticos”.

sábado, 10 de agosto de 2013

As moscas livres

SOU UM HEREGE: acredito mais em horóscopo  do que nessa “ciência da sustentabilidade“. 

Duvido desse  personagem, “o ativista”, que mais parece uma mosca que voa sobre o desespero  alheio. Confio na Cruz Vermelha, nos Médicos sem Fronteira, mas desconfio  desse personagem.  Pergunto de onde vem essa grana toda. Hoje em dia ser  ativista pode ser uma boa pedida para quem gosta de conhecer o mundo e aparecer  na mídia como bonzinho. 

Afinal, quem pagou a conta daquela  “flotilha da liberdade” (que brincou com o estado de  guerra continuo que o Oriente Médio vive há uns três mil anos)? Santa Klaus?  

Imagina só que legal para o book de um ativista poder dizer“I  was there”… Tem ativista que vai viver uns vinte anos por conta daquela viagem “humanitária”. Vai acabar pousando em campanha publicitária  por aí.  Voltando a sustentabilidade. Claro que devemos cuidar da natureza. 


Uma coisa é impedir que uma fábrica jogue lixo no mar, outra coisa é  calcular quanto uma pessoa polui o mundo em seu cotidiano e gerar impostos,  leis, moral e espiritualidade em cima disso.  Quando se delira  com demônios, o ridículo é visível. Mas quando o delírio vem regado a  cálculos “científicos”, se torna invisível. A modernidade tem um  fetiche pelo controle cientifico da vida, não resiste ao gozo da opressão em  nome da ciência.

Como alguém pode conceber uma “ciência da  sustentabilidade” sem a paranoia de uma gigantesca burocracia de  controle dos detalhes da vida?  Controlar desmatamento é uma coisa,  mas calcular gases emitidos por vacas ou número de voos individuais  ou sapatos “não sustentáveis” é loucura. O ordenamento sustentável da vida se tornará um tipo de totalitarismo sem precedentes. 

E aí chegamos  à assustadora alma fascista da cultura verde. Cuidado  com o que come, onde anda, como vai ao trabalho, como faz sexo. Não viaje de  avião, não coma picanha, não enterre ou queime cadáveres. Não use sapatos, não  use casacos (vistam-se com folhas de parreira, talvez?). 


Como toda forma de  fascismo, sempre se trata, ao final, de uma forma de ódio aos humanos reais, no  caso, em nome do amor às lesmas.  Ninguém percebe a marca fascista da  “ciência da sustentabilidade”? Sistemas totalitários não precisam ser sistemas  centralizados, como no modelo do fascismo histórico. Nem tampouco o que importa  é o “conteúdo ideológico”, mas sim a forma de controle cotidiano de hábitos  considerados “poluidores da pureza” desejada. 

Basta somar “dados  científicos” à máquina gestora do estado e do mercado constrangendo o  comportamento com leis, impostos e produtos. E, finalmente, somemos  os “Kommandos” (os ativistas) que denunciarão os “poluidores” à gestão da  pureza. 

Aliás, um parêntesis: os nazistas devem estar festejando a proposta  de alguns ativistas antissemitas (sim, eu disse “antissemita”, só tolinhos creem  na diferença entre antissemita e antissionista) de boicotar a “cultura  israelense“. Sei que vão dizer que “cultura  israelense” não é a mesma coisa que “cultura judaica“, mas só os mesmos tolinhos creem nesta diferença. 


Os “não  sustentáveis” serão a bola da vez. Temo que um dia esses fascistas  verdes chegarão a conclusão que (como diz um amigo meu bem esquisito) o  canibalismo é a forma mais sustentável de viver. 

Afinal de contas, qualquer  coisa que comamos, estaremos ferindo criaturas com “direitos“.  Provavelmente advogados verdes defenderão as vacas contra a opressão  que sofrem dos carnívoros. Em seguida, será a vez das alfaces terem direitos.  O canibalismo verde pode ser a solução: a pior espécie (os humanos) que já pisou no planeta comerá a si mesma, num ritual macabro de  autopurificação em nome da sustentabilidade total. 

Por último, tenho uma  confissão a fazer. No último final de semana cometi um ato desesperado contra o  fascismo verde. Foi apenas um pequeno ato singelo que desaparecerá no oceano dos  dias por vir.

Queimei com meu charuto uma maldita mosca que voava sobre mim.  Minha culpa, minha máxima culpa… Será que já existe alguma ONG denominada “Free Flies” (Moscas Livres)?



Fonte:
Luis Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e de Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, “Contra um mundo melhor” e “Guia politicamente incorreto da filosofia”. Escreve na versão impressa da Folha.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Foucault: entre o poder e o estado




O conceito de poder em Foucault tem sido objeto de grandes controvérsias, as quais, não raro, pecam pela errônea compreensão dos objetivos do filósofo e do(s) significado(s) que ele empresta à palavra poder. É afirmado com relativa freqüência que as obras Vigiar e Punir e Vontade de Saber marcam uma mudança de curso, objeto e método por parte de Foucault. Penso que apontar a continuidade essencial do projeto filosófico foucaultiano é uma tarefa importante para a compreensão do quase enigmático conceito de poder presente em suas obras. Vigiar e Punir é um livro que marca uma nova orientação nas pesquisas de Foucault, muito embora ainda se deva falar de um mesmo projeto filosófico.

O poder disciplinar descrito em Vigiar e Punir não se identifica a uma instituição política ou aparelho de Estado. Trata-se de um tipo de configuração de poder que perpassa as instituições e discursos, como uma espécie de tecnologia. O poder não tem essência, é apenas uma relação. Por tal motivo, ele não deve ser concebido como sendo fundamentalmente repressivo nem confundido com a violência. “Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre coisas (...) Uma relação de poder, pelo contrário, se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis para ser justamente uma relação de poder: que o ‘outro’ (aquele sobre quem ela se exerce) seja reconhecido e mantido até o fim como sujeito de ação; e que se abra diante da relação de poder todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis” (Foucault, 1984, p. 313). Neste sentido, o exercício do poder consiste num conjunto “de ação sobre ações possíveis”, do tipo da incitação, indução, facilitação, limitação, impedimento, etc.

A atualização das redes de relações de poder que criam e estabilizam os diagramas constituem um processo de estabilização (Foucault, 1985, p. 67 e 90). Esta consiste em traçar uma linha geral de força que permite ligar as singularidades, homogeneizá-las, colocá-las em série e fazê-las convergir (Foucault, 1985, p. 90). As instituições como a família, o Estado, a Religião, a produção, são os fatores integrantes. Tais instituições não são essências, mas sim práticas, mecanismos operatórios.

É neste sentido que para Foucault não há o Estado, mas sim práticas de “estatização” que variam na história (Foucault, 1984, p. 318). Deste modo, o Estado supõe as relações de poder, ao invés de ser a sua origem. O Estado seria uma espécie de curva que reuniria uma série de pontos singulares; neste sentido ele seria uma regra, uma regularidade. O diagrama é a própria emissão de singularidades, enquanto a instituição, a curva estabilizadora. O poder soberano (não o poder do soberano) seria uma instância capaz de explicar alguns comportamentos coletivos dotados de finalidade e sentido.

A norma funciona também como medida comum que permite que cada um pense o seu valor, sua identidade e lugar respectivo no interior da sociedade. Neste sentido ela “socializa o juízo (jugement) e as identidades”. A norma constitui-se num “ponto fictício onde aquilo que vive disperso na sociedade pode se ver como um”. Ela é o espelho das solidariedades, funcionando como um princípio de totalização, o qual assume um caráter muito específico. A norma é, deste modo, o princípio regulador das práticas que constituem o Estado (as práticas de governo (Foucault, 1984, p. 314) e estatização).

Providencialista, esta nova forma de poder pastoral (Foucault, 1984, p. 305). Não se trata de encontrar um interesse ou um bem geral e comum universalizável, mas antes de constituir-se numa sociedade que concretamente se apresenta dividida por elementos por vezes antagonistas e somente por vezes solidários, um lugar onde se pode representar o fato da solidariedade. Nesta dimensão, a norma como medida comum opera como um indicador do estado e identidade de cada indivíduo ou grupo e como instrumento do jogo social. Por fim, a norma seria também a forma moderna do vínculo social, na medida em que ela define as condições do consenso (o qual substitui a função do contrato social na sociedade liberal). Ela serve de referência para uma negociação que ela torna permanente. Ela é também aquilo que a negociação deve corrigir. Instaura uma desigualdade para logo retificá-la. Ela serve para reinserir os privilégios no contexto da normalidade.

A norma designa sempre uma medida  que serve para avaliar o que está conforme a regra e o que a distingue; não está mais ligada à ideia de retidão, esquadro, mas de “mediana” - a  norma torna-se agora o parâmetro para opor normal/anormal, normal/patológico.

Vigiar e punir define as disciplinas como “poder da norma”, desempenhando uma das principais tecnologias de poder das sociedades modernas. A difusão da sociedade disciplinar tem operado segundo três grandes modalidades: 1) inversão funcional das disciplinas, ocorrendo a passagem da disciplina compacta, voltada para funções negativas e mecânicas; 2) proliferação dos mecanismos disciplinares; enquanto os estabelecimentos de disciplina se multiplicam, seus mecanismos têm a tendência de se desinstitucionalizar, sair das fronteiras fechadas onde funcionam e circulam em estado livre; toda instituição torna-se suscetível de utilizar o esquema disciplinar, não se dirigido somente aos que ela pune, mas pondo-se ao serviço do bem de todos, de toda produção socialmente útil; 3) estatização dos mecanismos de disciplina, funcionando através de uma polícia centralizada, com a missão de uma vigilância permanente, exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo visível. A generalização do esquema e das técnicas disciplinares tornou possível a prisão, assim como as escolas, fábricas, casernas, hospitais.

Com isso, Foucault não quer dizer que a sociedade disciplinar seja uma sociedade generalizada de confinamento; ao contrário, sua difusão, longe de cindir ou compartimentar, homogeneíza o espaço social. O importante na ideia de sociedade disciplinar é a própria ideia de sociedade: as disciplinas fazem a sociedade, criam uma linguagem comum entre as instituições.




Fonte:

DELEUZE, Gilles. Foucault. Paris, Ed. Minuit, 1986.
fflch.usp.br/sociologia/temposocial
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro, Ed. Cadernos da PUC/RJ, 1974.
_______. Precisazione sul potere. Risposta ad alcuni critici. Aut-Aut, nº 167/168, 1978.
_______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
_______. Nietzsche, Freud e Marx. Porto, Ed. Anagrama, 1980.
FOUCAULT, Michel. La impossible prision. Debate con Michel Foucault. Barcelona, Ed. Anagrama, 1982.
_______. Structuralism and post-structuralism. An interview with Michel Foucault. Telos, Spring, nº 55, 1983.
_______. Deux essais sur le sujet et le pouvoir. In: DREYFUS, L. H. & RABINOW, P. Michel Foucault. Un parcours
philosophiquec. Paris, Gallimard, 1984.
_______. Vontade de saber. 8ª ed. Rio de Janeiro, Graal, 1985.
_______. Arqueologia do saber. Petrópolis/Rio de Janeiro, Vozes/Forense Universitária, 1986.
_______. Vigiar e punir. 5ª ed. Petrópolis, Vozes, 1987.

sábado, 18 de maio de 2013

Entre o estado natural e a constituição da sociedade



Inicialmente, o conceito de sociedade civil era visto como sinônimo de  Estado, como uma comunidade política enraizada nos princípios da cidadania.

Neste sentido, é possível notar que, até o século XVIII a preocupação comum dos teóricos – como Hobbes, Locke, Rousseau, Ferguson, Smith, Montesquieu e Hume por exemplo – era a de examinar as condições sob as quais os seres humanos poderiam escapar do Estado de natureza e entrar em uma forma contratual de governo baseada na regra da lei, isto é, em uma sociedade civil.

Destarte, um componente essencial desse uso do termo sociedade civil era seu  contraste com um estado de natureza imaginário.

Thomas Hobbes foi, provavelmente, o primeiro dentre os filósofos políticos modernos a colocar a questão das origens da sociedade de uma forma  sistemática. Na verdade, era essencial para seu argumento estabelecer uma  distinção – ou quiçá uma oposição – entre o estado de natureza e a sociedade civil a fim de justificar sua defesa do “Leviatã” como expressão da livre associação entre homens racionais. Na verdade, o próprio Hobbes deixa explícito este ponto quando, no capítulo 17 do “Leviatã”, afirma que o acordo entre os animais é algo natural ao passo que o acordo entre os homens é algo necessariamente artificial.

A formulação do conceito de sociedade civil dada por Hobbes influenciou muito os teóricos seguintes, como Locke e Rousseau.

Locke

No estado de natureza, situação em que segundo a doutrina contratualista o homem ainda não instituiu o governo civil, John Locke entende que os indivíduos são iguais, independentes e estão plenamente livres para decidir suas ações, dispor de seus bens e regular os semelhantes que possam vir a ofender os seus direitos naturais de acordo com seu próprio arbítrio, sendo permitido usar de qualquer meio para salvaguardar suas vidas, liberdade, saúde e posses. No entanto, a vida neste estado natural, implica na incerteza e insegurança da manutenção de próprios direitos, pois o homem é exposto constantemente à violação de sua intimidade e domínios, uma vez que todos são reis absolutos em suas decisões e julgam de acordo com seus valores, sempre em causa própria. Este julgamento, ainda que de forma correta, não dispõe de nenhum poder social instituído que sustente e dê subsídios para execução de sua sentença. O homem, então, renuncia esta condição de liberdade pelo aparente paradoxo da sujeição e submissão ao domínio de outro poder instituído pelo consenso entre os indivíduos, a fim de estabelecer a própria liberdade. Isto somente será possível em uma sociedade politicamente organizada e regulada por uma instituição comum a todos, que supra as carências e deficiências do estado de natureza, garantindo-lhes a conservação da propriedade, finalidade precípua para os homens se unirem em sociedades políticas e se submeterem a um governo, dando-lhes leis claras e conhecidas, um magistrado imparcial e um poder legítimo para fazer valer a execução de sua sentença.

Hobbes

Hobbes esboçou o que seria a vida do homem antes das sociedades organizadas tomando como base que a natureza fez os homens iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito, onde cada indivíduo teria todos os direitos para conservar sua vida. Esse "direito de natureza (jus naturale) é a liberdade que cada homem possuí de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim".

Como o homem é racional, ele projeta fins e devido à igualdade natural de, os fins, muitas vezes, são os mesmos segundo o desejo de muitos homens, o que faz com que eles se tornem inimigos já que é impossível que a mesma coisa seja gozada por ambos. O "estado de natureza" é um estado de guerra permanente, representando a vida antes de um poder instituído e, portanto, está inserido nessa "guerra de todos os homens contra todos os homens", onde "o homem é o lobo do homem". A condição do homem em tal estado, conseqüentemente, era miserável e sua vida era solitária, sórdida, embrutecida e curta, não existindo indústria, ciências, letras e muito menos arte. Entretanto o pior, e constante, temor era o perigo de morte violenta.

Na natureza humana, segundo Hobbes, encontramos três causas principais de discórdia: a competição, a desconfiança e a glória. "A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação". O homem, no estado de natureza, não pode trabalhar, cultivar o espírito e não busca a companhia do outro: quando se pensa que se pode fazer algo de bom ou construir algo, vem alguém e destrói tudo. A desconfiança impera juntamente com os acordos momentâneos. A busca pelos mesmos fins resulta num choque natural e nada é injusto, pois não há lei (somente a lei do mais forte). Se cada homem preservar seu direito a todas as coisas, o que se pode esperar é a morte violenta.

Rousseau

Segundo Rousseau, o homem em seu estado de natureza vivia isolado nas florestas, em total liberdade como seres iguais, não tendo capacidade de se distinguir de outro ser humano – porque ele nem tinha a noção de que existem outros como ele – e essa distinção requer a habilidade de abstração, o que ele ainda não possuía, mantendo perfeito equilíbrio com a natureza e o ambiente, pois sabia reagir e se adaptar à natureza e às suas exigências sobrevivendo com o que ela lhe oferecia.

Nesta fase inicial, considera-se que o homem pensado por Rousseau é algo como o, bom selvagem, no sentido de que ele vivia feliz na simplicidade, mas como um selvagem. Não possuía noções morais como, por exemplo, a de bem ou mal. Estas noções são adquiridas com o processo de civilização.

Ainda no estado de natureza, começa a ocorrer uma aproximação entre os homens pela série de eventos naturais que teriam ocasionado essa aproximação dos seres que eram independentes uns dos outros. Particularmente, foram catástrofes naturais que impulsionaram os seres humanos a viverem juntos e, assim, adquirirem as condições necessárias para a formação da sociedade. Dessa forma, quando os homens começaram a precisar uns dos outros eles uniam-se em forma de bando ou associação livre que durava pouco, apenas o tempo suficiente para que a necessidade que os fizera se juntar acabasse. Nesse momento, começaram a descobrir alguns tipos de armas e juntamente com essa adquiriram também percepção do poder em família – primeira relação de poder natural. Começa-se a estabelecer as primeiras propriedades, que conforme Rousseau foi o maior motivo do surgimento das desigualdades entre os homens. Ele chega a dizer que o primeiro que delimitou o que era seu é o verdadeiro fundador da sociedade civil.






Fonte:

marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronica


quarta-feira, 24 de abril de 2013

Rousseau e o contrato social






Bem no início do "Contrato Social", Rousseau afirma que "o homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros". Discutindo esse fato, o filósofo criou uma das obras fundamentais da filosofia política ocidental.

Jean-Jacques Rousseau perdeu a mãe ao nascer e foi educado por um pastor protestante na cidade de Bossey (Suíça). Voltou para Genebra e ali exerceu vários ofícios, entre eles o de gravador. Foi ainda professor de música em Lausanne (também na Suíça).

Tornando-se amante de madame de Warens, viveu com ela em Chambery (França) até 1740.

Em 1742, estabeleceu-se em Paris, onde fez amizade com os filósofos iluministas (os chamados "philosophes"), entre os quais estavam Diderot e Condillac. Colaborou na "Enciclopédia" (coordenada por Diderot), escrevendo diversos verbetes. Ainda em Paris, uniu-se a Thérèse Levasseur, com quem viveu muitos anos.

Em 1749, a Academia de Dijon propôs um prêmio para quem respondesse à seguinte questão: "O estabelecimento das ciências e das artes terá contribuído para aprimorar os costumes?" Em consequência do que ele mesmo considerou uma iluminação, Rousseau escreveu o "Discurso Sobre as Ciências e as Artes", tratando já da maioria dos temas importantes em sua filosofia e respondendo negativamente àquela pergunta. Em julho do ano seguinte, recebeu o primeiro prêmio: uma medalha de ouro e 300 libras francesas.

Com a publicação dessa obra, Rousseau conquistou reconhecimento. Seguiram-se anos de grande atividade reflexiva. Em 1755, publicou-se o "Discurso Sobre a Origem da Desigualdade Entre os Homens". Em 1761, veio à luz "A Nova Heloísa", romance epistolar que obteve grande sucesso. No ano seguinte, saíram duas de suas obras mais importantes: o ensaio "Do Contrato Social" e o tratado pedagógico "Emílio, ou da Educação".

Em 1762, Rousseau foi perseguido por conta de suas obras, consideradas ofensivas à moral e à religião, e obrigado a exilar-se em Neuchâtel (Suíça). Três anos depois, partiu para a Inglaterra, a convite do filósofo David Hume.

O contrato social

A questão da liberdade do homem é o mote central de "O Contrato Social", uma das obras primas de Jean-Jacques Rousseau. "O Contrato Social" é um ensaio fundamental para a história da filosofia e ao mesmo tempo uma obra para ser lida com prazer, na qual o filósofo conversa de igual para igual com o leitor.

Rousseau escreveu dezenas de obras num estilo que poderíamos chamar de ensaio filosófico. Tendo nascido na Suíça, estabeleceu-se em Paris em 1742, onde fez amizade com os filósofos enciclopedistas, entre os quais Denis Diderot e Condillac. Colaborou na "Enciclopédia" coordenada por Diderot, escrevendo diversos artigos. Em 1749, a Academia de Dijon ofereceu um prêmio para quem respondesse à seguinte questão: "O restabelecimento das ciências e das artes terá contribuído para aprimorar os costumes?"

Em consequência do que ele mesmo chamou de uma iluminação, Rousseau escreveu o "Discurso Sobre as Ciências e as Artes", tratando já da maioria dos temas importantes em sua filosofia. Em julho do ano seguinte recebeu o primeiro prêmio, que se materializou numa medalha de ouro e em trezentas libras. Com a publicação desta obra, Rousseau obteve o reconhecimento.

As bases da sociedade

Os anos seguintes foram de grande efervescência intelectual. Publicou o "Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens" e mais tarde um romance epistolar, "A Nova Heloísa", que obteve grande êxito. Em 1762 surgiram duas de suas obras mais importantes, o ensaio "O Contrato Social" e o tratado "Emílio, ou da Educação".

"O Contrato Social" é considerado uma das obras fundamentais da filosofia política. Rousseau parte do pressuposto de que é impossível retornar ao estado de natureza. O homem em estado de natureza participa de uma condição sem lei nem moralidade. Só um contrato com seus semelhantes oferece as bases legítimas para uma vida em sociedade.

É preciso, então, criar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa do uso da força. Longe de ser um pacto de submissão, o contrato social é um pacto de associação entre os homens. No estado civil, preconizado por Rousseau, o soberano é a vontade geral.

Influência de Rousseau

Na época da publicação de "O Contrato Social" Rousseau tinha 50 anos e era um homem célebre. Após a publicação, seu livro foi considerado ofensivo às autoridades, que ordenaram a prisão do autor. Rousseau fugiu para a cidade de Neuchatel, na Suíça.

"O Contrato Social" foi uma das obras que marcou o ideário da Revolução Francesa. Em seus últimos anos de vida, Rousseu levou uma vida isolada, e redigiu em sua defesa as "Confissões" (uma espécie de livros de memórias).

A influência da obra de Rousseau pode ser estendida até os dias de hoje. "O Contrato Social" marca a elaboração da noção de Estado moderno. Além de escritor e filósofo, Jean-Jacques Rousseau foi também apaixonado por música. Escreveu duas óperas, "As Musas Galantes" e "O Adivinho da Aldeia" e estudou teoria musical. Suas experiências, reflexões e sensações foram registradas no livro "Os Devaneios de um Caminhante Solitário", publicado em 1776.


Fonte:
educacao.uol





quarta-feira, 3 de abril de 2013

O fenômeno fundamentalista


Hoje se fala muito de fundamentalismo. Fundamentalismo do mercado e do projeto neoliberal, fundamentalismo cristão, fundamentalismo islâmico, principal responsável pelos atentados de 11 de setembro, fundamentalismo das posturas políticas e bélicas do Presidente Bush. Tentemos esclarecer o leitor o que seja fundamentalismo e o risco que representa para a pacífica convivência humana e para o futuro da humanidade.

O nicho do fundamentalismo se encontra no protestantismo americano, surgido nos meados do século 19 e formalizado, posteriormente, numa pequena coleção de livros que vinha sob o título Fundamentals: a testimony of the Truth (1909-1915). Trata-se de uma tendência de fiéis, pregadores e teólogos que tomavam as palavras da Bíblia ao pé da letra (o fundamento de tudo para a fé protestante é a Bíblia). Se Deus consignou sua revelação no Livro Sagrado, então tudo, cada palavra e cada sentença, devem ser verdadeiras e imutáveis. Em nome do literalismo, esses fiéis opunham-se às interpretações da assim chamada teologia liberal. Esta usava e usa os métodos histórico-críticos e hermenêuticos para interpretar textos escritos há 2-3 mil anos. Supõe-se que a história e as palavras não ficaram congeladas. Precisam ser interpretadas para resgatar-lhes o sentido original. Esse procedimento para os fundamentalistas é ofensivo a Deus. Por razões semelhantes, eles se opõem aos conhecimentos contemporâneos da história, das ciências, da geografia e especialmente da biologia que possam questionar a verdade bíblica.

Para o fundamentalista, a criação se realizou mesmo em sete dias. O cristianismo detém o monopólio da verdade revelada. Jesus é o único caminho para a salvação. Fora dele há somente perdição. Daí o caráter militante e missionário de todo fundamentalista. Face aos demais caminhos espirituais ele é intolerante, pois eles significam simplesmente errância. Na moral é especialmente rigoroso, particularmente no que concerne à sexualidade e à família. É contra os homossexuais, o movimento feminista e os movimentos libertários em geral. Na economia é conservador e na política sempre exalta a ordem e a segurança a qualquer custo.

O fundamentalismo protestante ganhou relevância social a partir dos anos 50 com as Eletronic Church. Pregadores nacionalmente famosos usam o rádio e a televisão em cadeia para suas pregações e campanhas conservadoras. Sob Ronald Reagan, significaram um fator político determinante. Combatem abertamente o Conselho Mundial de Igrejas em Genebra (que reúne mais de duas centenas de denominações cristãs) e todo tipo de ecumenismo, tidos como coisa do diabo.

O catolicismo possui também seu tipo de fundamentalismo. Ele vem sob o nome de Restauração e Integrismo. Procura-se restaurar a antiga ordem, fundada no casamento (incestuoso) do poder político com o poder clerical. Visa-se uma integração de todos os elementos da sociedade e da história sob a hegemonia do espiritual representado, interpretado e proposto pela Igreja Católica (seu corpo hierárquico encabeçado pelo Papa). O inimigo a combater é a modernidade, com suas liberdades e seu processo de secularização. Expressões do Integrismo é modernamente o Cardeal Josef Ratzinger, presidente da antiga Inquisição, que sustenta ainda a tese de que a Igreja Católica é a única Igreja de Cristo, também a única religião verdadeira, fora da qual não todos correm risco de perdição. Ou o arcebispo Marcel Lefebvre, que fundou sua Igreja paralela, considerada a fiel detentora da Tradição e da fé verdadeiras. Características fundamentalistas se encontram também em setores importantes do pentecostismo, também católico e nas igrejas evangelicais populares.

Intolerância -Não é uma doutrina. Mas uma forma de interpretar e viver a doutrina. É a atitude daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista. Sendo assim, imediatamente surge um problema de graves conseqüências: quem se sente portador de uma verdade absoluta não pode tolerar outra verdade e seu destino é a intolerância. E a intolerância gera o desprezo do outro e o desprezo, a agressividade e a agressividade, a guerra contra o erro a ser combatido e exterminado. Irrompem guerras religiosas, violentíssimas, com incontáveis vítimas.

Não há nenhuma religião mais guerreira que a tradição dos filhos de Abraão: judeus, cristãos e muçulmanos. Cada qual vive da convicção tribalista de ser povo escolhido e portador exclusivo da revelação do Deus único e verdadeiro. Essa fé deve ser difundida em todo o mundo, em geral numa articulação com o poder colonialista e imperial, como historicamente ocorreu na América Latina, África e Ásia.

O fundamentalismo, como atitude e tendência, se encontra em setores de todas as religiões e caminhos espirituais. Hoje em dia, o fundamentalismo judeu se centra na construção do Estado de Israel segundo o tamanho que lhe atribui à Bíblia hebraica. O fundamentalismo islâmico quer fazer do Alcorão a única forma de vida, de moral, de política e de organização do Estado entre os islâmicos e em todo o mundo. Todos os que se opõem a essa visão de mundo são obstáculos à instauração ''da cidade de Deus'' e conseqüentemente são infiéis e merecem ser perseguidos e eventualmente eliminados.
Verdade -O fundamentalismo não possui apenas um rosto religioso. Todos os sistemas sejam culturais, científicos, políticos, econômicos e artísticos que se apresentam como portadores exclusivos de verdade e de solução única para os problemas devem ser considerados fundamentalistas. Vivemos atualmente sob o império feroz de vários fundamentalismos.

O primeiro e mais visível de todos é o fundamentalismo da ideologia política do neoliberalismo, do modo de produção capitalista e de sua melhor expressão, o mercado mundialmente integrado. Ele se apresenta como a solução única para todos os países e para todos as carências da humanidade (todos precisam de um necessário choque de capitalismo, diz-se fundamentalisticamente). A lógica interna deste sistema, entretanto, é ser acumulador de bens e serviços, por isso, criador de grandes desigualdades (injustiças), explorador ou dispensador da força de trabalho e predador da natureza. Ele é apenas competitivo e nada cooperativo. Politicamente é democrático, economicamente é ditatorial. Por isso a economia capitalista destrói continuamente a democracia participativa. Onde se implanta, a cultura capitalista cria uma cosmovisão materialista, individualista e sem qualquer freio ético. Há teóricos que apresentam essa etapa como o fim da história. Para ela não haveria alternativa. Urge inserir-se nela. Caso contrário perde-se o ritmo da história. A condenação é a marginalidade ou a exclusão. Eis o pensamento único e a ditadura da globalização especialmente econômico-financeira (considero esta etapa como a idade de ferro da globalização), hegemonizada pelas potências ocidentais.

Outro tipo de fundamentalismo comparece no paradigma científico moderno. Ele está assentado sobre a violência contra a natureza. Bem dizia Francis Bacon, pai da moderna metodologia científica: há de se torturar a natureza como o faz o inquisidor com seu inquirido, até que ela entregue todos os seus segredos. Impõe-se esse método, fundado no corte e na compartimentação da realidade una e diversa, como a única forma aceitável de acesso ao real. Desmoralizam-se outras formas de conhecimento que vão além ou ficam aquém dos caminhos da razão instrumental-analítica. Ocorre que o projeto da tecnociência gestou o princípio da autodestruição da vida. A máquina de morte já construída pode pôr fim à biosfera e impossibilitar o projeto planetário humano. Na guerra bacteriológica, basta meio quilo de toxina do botulismo para matar 1 bilhão de pessoas.

Bin Laden - Nos dias atuais assistimos, estarrecidos, a dois tipos de fundamentalismo político. Um representado pelo presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, e outro por Osama Bin Laden. O presidente americano urde seus discursos no melhor código fundamentalista: A luta é do bem (América) contra o mal (terrorismo islâmico). Ou se é contra o terrorismo e pela América ou se é a favor do terrorismo e contra a América. Não há matizes nem alternativas. O ataque terrorista não foi contra os Estados Unidos mas sim contra a humanidade, na suposição que eles são a própria humanidade. O projeto inicial de guerra se chamava Justiça Infinita, termo que usurpa a dimensão do Divino. Depois com menor arrogância, mas na linguagem da utopia, chamou-se de Liberdade Duradoura. Termina suas intervenções com ''God saves America. Há dezenas de anos que a política exterior dos Estados Unidos maltrata as nações árabes fazendo pacto com governantes despóticos (alguns emirados árabes nem constituição possuem) em razão da garantia do suprimento de petróleo. A partir de 1991, por ocasião da guerra contra o Iraque, já morreram naquele pais cerca de 1 milhão de crianças por causa do embargo que atinge os suprimentos medicinais e 5% da população foi morta em sistemáticos bombardeios.

A atuação no conflito entre Israel e os palestinos é a posições dos Estados Unidos visivelmente unilateral, em favor dos ataques devastadores que a máquina de guerra israelense move contra a população palestina que usa pedras (intifada). A Arábia Saudita é ocupada por uma poderosa base militar americana, território sagrado do islamismo onde se situam as duas cidades santas Meca e Medina. Tal fato é para a fé islâmica tão vergonhoso quanto um católico tolerar a Máfia no governo do Vaticano. Coisas assim acumulam amargura, ressentimento, revolta e vontade de vindita. É o fermento do terrorismo muçulmano cujos efeitos nefastos todos assistimos e condenamos.

Não menos fundamentalista é a retórica dos talibãs e de Osama Bin Laden. Este também coloca a guerra entre o bem (islamismo) e o mal (a América). Em seu famoso discurso após o atentado, divide o mundo entre dois campos: o campo dos fiéis e o campo dos infiéis. ''O chefe dos infiéis internacionais, o símbolo mundial moderno do paganismo, é a América e seus aliados.'' O atentado terrorista significa que ''a América foi atacada por Deus em um dos seus órgãos vitais - Graça e gratidão a Deus''. A cultura ocidental como um todo é vista como materialista, atéia, secularista, anti-ética e belicista. Daí a recusa em dialogar com ela e a vontade de estrangulá-la em nome do próprio Alá.
Em nome de que Deus ambos falam? Não é seguramente em nome do Deus da vida, de Alá, o Grande e Misericordioso, nem em nome do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, da ternura dos humildes e da opção pelos oprimidos. Falam em nome de ídolos que produzem mortes e vivem de sangue.

É próprio do fundamentalismo responder terror com terror, pois se trata de conferir vitória à única verdade e ao bem e destruir a falsa ''verdade'' e o mal. Foi o que ambos, Bush e Bin Laden fizeram. Enquanto predominarem tais fundamentalismos seremos condenados à intolerância, à violência e à guerra e, no termo, à ameaça de dizimação da biosfera.

Cegos - Não se há de sorrir nem de chorar. Mas de procurar entender. Todos os fundamentalismos, não obstante o variado matiz, possuem as mesmas constantes. Trata-se sempre de um sistema fechado, feito de claro e de escuro, inimigo de toda diferenciação e cego face à lógica do arco-íris, em que a pluralidade convive com a unidade. Cada verdade se encontra indissoluvelmente concatenada à outra. Questionada uma, desaba todo o edifício. Daí a intolerância e a lógica linear. Daí sua força de atração para espíritos sedentos de orientações claras e de contornos precisos. Para o fundamentalista militante a morte é doce, pois transporta o mártir diretamente ao seio materno de ''Deus'', enquanto a vida é vivida como oportunidade de cumprir a missão divina de converter ou exterminar os infiéis. O grupo é o lar da identidade, o porto da plena segurança e a confirmação de estar do lado certo.
Como enfrentar os fundamentalistas? Estes são praticamente inacessíveis à argumentação racional. Nem por isso deve-se renunciar ao diálogo, à tolerância e o uso da razão para mostrar as contradições internas, subjacentes ao discurso e à prática fundamentalista. Por detrás do fundamentalismo político vigora uma experiência dolorosa de humilhação e de prolongado sofrimento. E procura-se infligir a mesma coisa ao outro, o que é manifestamente contraditório. Trazer o fundamentalista à realidade concreta, cheia de contradições, claro-escuros e nuances pode introduzir nele a dúvida e a insegurança. Estas possuem uma função terapêutica. Podem abrir uma brecha para a luz no muro das convicções cerradas e excludentes. Dialogar até a exaustão, negociar até o limite intransponível da razoabilidade, pode levar o fundamentalista a reconhecer o outro, seu direito de existir e a contribuição que poderá dar para uma convergência mínima na diversidade.

Estamos numa encruzilhada da história humana. Ou criar-se-ão relações multipolares de poder, eqüitativas e inclusivas com pesados investimentos na qualidade total da vida para que todos possam comer, morar com mínima dignidade e apropriar-se de cultura com a qual se possam comunicar com seus semelhantes, preservando a integridade e beleza da natureza ou iremos ao encontro do pior, quem sabe, ao mesmo destino dos dinossauros. Armas para isso existem e sobra demência. Faz-se urgente mais sabedoria que poder e mais espiritualidade que acúmulo de bens matérias. Então os povos poderão se abraçar como irmãos na mesma Casa Comum, a Terra, e irradiaremos como filhos da alegria e não como condenados ao vale de lágrimas.


Fonte:

Leonardo Boff, 1938, teólogo e escritor,autor de A oração de São Francisco: uma mensagem de paz para o mundo atual (Sextante)



quinta-feira, 14 de março de 2013

Revolução Cubana


Sendo uma das últimas nações a se tornarem independentes no continente americano, Cuba proclamou a formação de seu Estado independente sob o comando do intelectual José Marti e auxílio direto das tropas norte-americanas. A inserção dos norte-americanos nesse processo marcou a criação de um laço político que pretendia garantir os interesses dos EUA na ilha centro-americana. Uma prova dessa intervenção foi a criação da Emenda Platt, que assegurava o direito de intervenção dos Estados Unidos no país.
Dessa maneira, Cuba pouco a pouco se transformou no famoso “quintal” de grandes empresas estadunidenses. Essa situação contribuiu para a instalação de um Estado fragilizado e subserviente. De fato, ao longo de sua história depois da independência, Cuba sofreu várias ocupações militares norte-americanas, até que, na década de 1950, o general Fulgêncio Batista empreendeu um regime ditatorial explicitamente apoiado pelos EUA.

Nesse tempo, a população sofria com graves problemas sociais que contrastavam com o luxo e a riqueza existente nos night clubs e cassinos destinados a uma minoria privilegiada. Ao mesmo tempo, o governo de Fulgêncio ficava cada vez mais conhecido por sua negligência com as necessidades básicas da população e a brutalidade com a qual reprimia seus inimigos políticos. Foi nesse tenso cenário que um grupo de guerrilheiros se formou com o propósito de tomar o governo pela força das armas.

Sob a liderança de Fidel Castro, Camilo Cienfuegos e Ernesto “Che” Guevara, um pequeno grupo de aproximadamente 80 homens se espalhou em diversos focos de luta contra as forças do governo. Entre 1956 e 1959, o grupo conseguiu vencer e conquistar várias cidades do território cubano. No último ano de luta, conseguiram finalmente acabar com o governo de Fulgêncio Batista e estabelecer um novo regime pautado na melhoria das condições de vida dos menos favorecidos.

Entre outras propostas, o novo governo defendia a realização de uma ampla reforma agrária e o controle governamental sob as indústrias do país. Obviamente, tais proposições contrariavam diretamente os interesses dos EUA, que respondeu aos projetos cubanos com a suspensão das importações do açúcar cubano. Dessa forma, o governo de Fidel acabou se aproximando do bloco soviético para que pudesse dar sustentação ao novo poder instalado.

A aproximação com o bloco socialista rendeu novas retaliações dos EUA que, sob o governo de John Kennedy, rompeu as ligações diplomáticas com o país. A ação tomada no início de 1961 foi logo seguida por uma tentativa de contra-golpe, no qual um grupo reacionário treinado pelos EUA tentou instalar - sem sucesso - uma guerra civil que marcou a chamada invasão da Baía dos Porcos. Após o incidente, o governo Fidel Castro reafirmou os laços com a URSS ao definir Cuba como uma nação socialista.

Para que a nova configuração política cubana não servisse de exemplo para outras nações latino-americanas, os EUA criaram um pacote de ajuda econômica conhecido como “Aliança para o Progresso”. Em 1962, a União Soviética tentou transformar a ilha em um importante ponto estratégico com uma suposta instalação de mísseis apontados para o território estadunidense. A chamada “crise dos mísseis” marcou mais um ponto da Guerra Fria e, ao mesmo tempo, provocou o isolamento do bloco capitalista contra a ilha socialista.

Com isso, o governo cubano acabou aprofundando sua dependência com as nações socialistas e, durante muito tempo, sustentou sua economia por meio dos auxílios e vantajosos acordos firmados com a União Soviética. Nesse período, bem-sucedidos projetos na educação e na saúde estabeleceram uma sensível melhoria na qualidade de vida da população. Entretanto, a partir da década de 1990, a queda do bloco socialista exigiu a reformulação da política econômica do país.

Em 2008, com a saída do presidente Fidel Castro do governo e a eleição do presidente Barack Obama, vários analistas políticos passaram a enxergar uma possível aproximação entre Cuba e Estados Unidos da América. Em meio a tantas especulações, podemos afirmar que vários indícios levam a crer na escrita de uma nova página na história da ilha que, durante décadas, representou o ideal socialista no continente americano.


Fonte:

Rainer Sousa
brasil escola

quarta-feira, 13 de março de 2013

Rio+20: economia verde e desenvolvimento sustentável



Desde a Rio 92, a população do planeta cresceu 26%, atingindo sete bilhões de pessoas em 2011. A aceleração do consumo, no entanto, foi muito maior. A produção de comida aumentou 45% nos últimos 20 anos e a extração de materiais, 41%. O mundo chega à Rio+20 com o dobro de produção de plástico e elevação de 40% na emissão de gases poluentes. Segundo o relatório Living Planet, divulgado pela WWF em maio, se a demanda por recursos naturais utilizados na Terra continuar a expandir, como ocorreu nos últimos 20 anos, precisaremos de quase três planetas em 2050 para suprimir as necessidades da população. Ainda assim, alguns sinais são positivos, como o uso mais eficiente dos recursos naturais e a redução do desmatamento de florestas. 

Os dois temas centrais da Rio – a economia verde no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza e a estrutura institucional para o desenvolvimento sustentável – fazem do evento uma oportunidade para que a busca das boas práticas seja renovada. A ONU indica que investimentos de 2% do PIB global em dez setores-chave bastariam para tornar a economia mais sustentável. Mas as discussões incluem o temor de que novas exigências reforcem a situação atual de dominância dos ricos em relação aos pobres – países com menos recursos para investir em tecnologia, que acabariam tendo que importar painéis solares e turbinas eólicas, por exemplo. Uma parcela dos movimentos sociais e pesquisadores das áreas de meio ambiente e desenvolvimento têm questionado também o que consideram a banalização do conceito de desenvolvimento sustentável e o privilégio às práticas capitalistas. 

No documento de referência da Rio+20 “Rumo à uma economia verde”, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), a ONU defende que o conceito não substitui o de desenvolvimento sustentável. “A sustentabilidade continua sendo um objetivo vital a longo prazo, mas é preciso tornar a economia mais verde para chegarmos lá. Talvez o mito mais difundido seja o de que há uma troca inevitável entre preservação ambiental e progresso econômico. Mas há evidência substancial de que o ‘esverdeamento’ de economias não inibe a criação de riqueza ou oportunidades de emprego”, defende o documento.

Janos Pasztor, Secretário Executivo do Painel de Alto Nível do Secretário-Geral da ONU sobre Sustentabilidade Global, afirma que sustentabilidade não é só meio ambiente, mas engloba também as dimensões social e econômica. Melinda Kimble, vice-presidente do Fundo para as Nações Unidas, defende que a grande virada da economia verde é deixar claro que, apesar de requerer mais investimentos a curto prazo — assim como a maioria das iniciativas de sustentabilidade —, o sistema proposto se mostra lucrativo no futuro. “Existe um outro mito: a economia verde é um luxo que apenas países ricos têm condições de sustentar, ou pior, uma imposição do mundo desenvolvido para perpetuar a pobreza. Ao contrário, há uma plenitude de exemplos de transições verdes acontecendo em vários setores do mundo em desenvolvimento, que merecem ser copiadas em outros lugares”, explica a executiva da ONU.

Enquadrar essa questão social na discussão é justamente a grande preocupação do Brasil, que tem como uma das propostas para a Rio+20 acrescentar uma palavra ao termo, que passaria a ser economia verde inclusiva.

Compreendendo melhor a questão


Definimos como desenvolvimento sustentável o tipo de desenvolvimento capaz de suprir as necessidades da geração atual sem comprometer a capacidade de atender às necessidades das futuras gerações. É um tipo de desenvolvimento que não esgota os recursos para o futuro, e que dá à geração atual a possibilidade de se desenvolver sem agredir o meio ambiente, dando às gerações futuras a chance de existir e viver bem de acordo com as suas necessidades. O desenvolvimento sustentável somente será alcançado quando houver planejamento e a consciência de que os recursos naturais são finitos, ou seja, que esses recursos acabam.

Já o termo economia verde permite inúmeras interpretações e o seu conceito ainda não é consensual. A ideia central desse termo é que o conjunto de processos produtivos da sociedade e as transações deles decorrentes contribuam cada vez mais para o desenvolvimento sustentável, tanto nos aspectos sociais quanto ambientais, numa tentativa de conciliar ambientalismo e capitalismo. A economia verde propõe que, além das tecnologias produtivas e sociais, sejam criados meios pelos quais fatores essenciais ligados à sustentabilidade socioambiental, hoje ignorada nas decisões econômicas, passem a ser considerados. No Brasil e em outros países, por exemplo, trabalha-se a “economia verde inclusiva” na forma de programas para promover a conservação ou recuperação ambiental, apoio a segmentos da população cuja renda se origina da reciclagem de resíduos sólidos, entre outros programas.



Fonte:


brasil escola
em.com.br
Leticia Orlandi

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Escola de Frankfurt: Crítica à sociedade de comunicação de massa


Qual é a influência de meios de comunicação de massa, como a TV, sobre uma sociedade? Como as pessoas são mobilizadas a acompanharem um noticiário como se estivessem assistindo a uma telenovela? Os primeiros filósofos que detectarem a dissolução das fronteiras entre informação, consumo, entretenimento e política, ocasionada pela mídia, bem como seus efeitos nocivos na formação crítica de uma sociedade, foram os pensadores da Escola de Frankfurt.

Max Horkheimer (1895-1973) e Theodor W. Adorno (1903-1969) são os principais representantes da escola, fundada em 1924 na Universidade de Frankfurt, na Alemanha. No local, um conjunto de teóricos, entre eles Walter Benjamin (1892-1940), Jürgen Habermas (1929), Herbert Marcuse (1898-1979) e Erich Fromm (1900-1980), desenvolveram estudos de orientação marxista.

Os estudos dos filósofos de Frankfurt ficaram conhecidos como Teoria Crítica, que se contrapõe à Teoria Tradicional. A diferença é que enquanto a tradicional é "neutra" em seu uso, a crítica busca analisar as condições sociopolíticas e econômicas de sua aplicação, visando à transformação da realidade. Um exemplo de como isso funciona é a análise dos meios de comunicação caracterizados como indústria cultural.

Indústria cultural

Em um texto clássico escrito em 1947, "Dialética do Iluminismo", Adorno e Horkheimer definiram indústria cultural como um sistema político e econômico que tem por finalidade produzir bens de cultura - filmes, livros, música popular, programas de TV etc. - como mercadorias e como estratégia de controle social.

A ideia é a seguinte: os meios de comunicação de massa, como TV, rádio, jornais e portais da Internet, são propriedades de algumas empresas, que possuem interesse em obter lucros e manter o sistema econômico vigente que as permitem continuarem lucrando. Portanto, vendem-se filmes e seriados norte-americanos, músicas (funk, pagode, sertaneja etc) e novelas não como bens artísticos ou culturais, mas como produtos de consumo que, neste aspecto, em nada se diferenciariam de sapatos ou sabão em pó. Com isso, ao invés de contribuírem para formar cidadãos críticos, manteriam as pessoas "alienadas" da realidade.

Como afirmam no texto: "Filmes e rádio não têm mais necessidade de serem empacotados como arte. A verdade, cujo nome real é negócio, serve-lhes de ideologia. Esta deverá legitimar os refugos que de propósito produzem. Filme e rádio se autodefinem como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores-gerais tiram qualquer dúvida sobre a necessidade social de seus produtos."

Para Adorno, os receptores das mensagens dos meios de comunicação seriam vítimas dessa indústria. Eles teriam o gosto padronizado e seriam induzidos a consumir produtos de baixa qualidade. Por essa razão, indústria cultural substitui o termo cultura de massa, pois não se trata de uma cultura popular representada em novelas da Rede Globo, por exemplo, mas de uma ideologia imposta às pessoas.

Dominação política

E como a indústria cultural torna-se mecanismo de dominação política? Adorno e Horkheimer vislumbraram os meios de comunicação de massa como uma perversão dos ideais iluministas do século 18. Para o Iluminismo, o progresso da razão e da tecnologia iria libertar o homem das crenças mitológicas e superstições, resultando numa sociedade mais livre e democrática.

Mas os pensadores da Escola de Frankfurt, que eram judeus, se viram alvos da campanha nazista com a chegada de Hitler ao poder nos anos 30, na Alemanha. Com apoio de uma máquina de propaganda que pela primeira vez usou em larga escala os meios de comunicação como instrumentos ideológicos, o nazismo era uma prova de como a racionalidade técnica, que no Iluminismo serviria para libertar o homem, estava escravizando o indivíduo na sociedade moderna.

Nas mãos de um poder econômico e político, a tecnologia e a ciência seriam empregadas para impedir que as pessoas tomassem consciência de suas condições de desigualdade. Um trabalhador que em seu horário de lazer deveria ler bons livros, ir ao teatro ou a concertos musicais, tornando-se uma pessoa mais culta, questionadora e engajada politicamente, chega em casa e senta-se à frente da TV para esquecer seus problemas, absorvendo a mesmos valores que predominam em sua rotina de trabalho. É desta forma que a indústria cultural exerceria controle sobre a massa. Como resultado, ao invés de cidadãos conscientes, teríamos apenas consumidores passivos.


Totalitarismo eletrônico

Posteriormente, entre os anos 70 e 80, os frankfurtianos foram muito criticados por uma visão reducionista dos receptores, graças a pesquisas que demonstraram que as pessoas não são tão manipuláveis quanto Adorno pensava na época. Além disso, nem toda produção cultural se resume à indústria. Nas histórias em quadrinhos, por exemplo, temos Disney e Maurício de Souza, mas temos também quadrinhos alternativos e autorais.

Apesar disso, Adorno e Horkheimer tiveram o mérito de serem os precursores da denúncia de um "totalitarismo eletrônico", em que diversão e assuntos importantes são "mixados" num só produto; em que representantes políticos são escolhidos como se fossem sabonetes. Neste sentido, a crítica permanece atual.


Fonte:

José Renato Salatiel, Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação é jornalista e professor universitário
Assoum, Paul-Laurent. (1991). "A Escola de Frankfurt". São Paulo: Ática.
Horkheimer, M.; Adorno, T.W.; Habermas, J. (1975). "Textos Escolhidos". Coleção "Os Pensadores". São Paulo: Abril Cultural.
Matos, Olgária C. F. (2006). "A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo". São Paulo: Moderna.