segunda-feira, 20 de maio de 2013

Foucault: entre o poder e o estado




O conceito de poder em Foucault tem sido objeto de grandes controvérsias, as quais, não raro, pecam pela errônea compreensão dos objetivos do filósofo e do(s) significado(s) que ele empresta à palavra poder. É afirmado com relativa freqüência que as obras Vigiar e Punir e Vontade de Saber marcam uma mudança de curso, objeto e método por parte de Foucault. Penso que apontar a continuidade essencial do projeto filosófico foucaultiano é uma tarefa importante para a compreensão do quase enigmático conceito de poder presente em suas obras. Vigiar e Punir é um livro que marca uma nova orientação nas pesquisas de Foucault, muito embora ainda se deva falar de um mesmo projeto filosófico.

O poder disciplinar descrito em Vigiar e Punir não se identifica a uma instituição política ou aparelho de Estado. Trata-se de um tipo de configuração de poder que perpassa as instituições e discursos, como uma espécie de tecnologia. O poder não tem essência, é apenas uma relação. Por tal motivo, ele não deve ser concebido como sendo fundamentalmente repressivo nem confundido com a violência. “Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre coisas (...) Uma relação de poder, pelo contrário, se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis para ser justamente uma relação de poder: que o ‘outro’ (aquele sobre quem ela se exerce) seja reconhecido e mantido até o fim como sujeito de ação; e que se abra diante da relação de poder todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis” (Foucault, 1984, p. 313). Neste sentido, o exercício do poder consiste num conjunto “de ação sobre ações possíveis”, do tipo da incitação, indução, facilitação, limitação, impedimento, etc.

A atualização das redes de relações de poder que criam e estabilizam os diagramas constituem um processo de estabilização (Foucault, 1985, p. 67 e 90). Esta consiste em traçar uma linha geral de força que permite ligar as singularidades, homogeneizá-las, colocá-las em série e fazê-las convergir (Foucault, 1985, p. 90). As instituições como a família, o Estado, a Religião, a produção, são os fatores integrantes. Tais instituições não são essências, mas sim práticas, mecanismos operatórios.

É neste sentido que para Foucault não há o Estado, mas sim práticas de “estatização” que variam na história (Foucault, 1984, p. 318). Deste modo, o Estado supõe as relações de poder, ao invés de ser a sua origem. O Estado seria uma espécie de curva que reuniria uma série de pontos singulares; neste sentido ele seria uma regra, uma regularidade. O diagrama é a própria emissão de singularidades, enquanto a instituição, a curva estabilizadora. O poder soberano (não o poder do soberano) seria uma instância capaz de explicar alguns comportamentos coletivos dotados de finalidade e sentido.

A norma funciona também como medida comum que permite que cada um pense o seu valor, sua identidade e lugar respectivo no interior da sociedade. Neste sentido ela “socializa o juízo (jugement) e as identidades”. A norma constitui-se num “ponto fictício onde aquilo que vive disperso na sociedade pode se ver como um”. Ela é o espelho das solidariedades, funcionando como um princípio de totalização, o qual assume um caráter muito específico. A norma é, deste modo, o princípio regulador das práticas que constituem o Estado (as práticas de governo (Foucault, 1984, p. 314) e estatização).

Providencialista, esta nova forma de poder pastoral (Foucault, 1984, p. 305). Não se trata de encontrar um interesse ou um bem geral e comum universalizável, mas antes de constituir-se numa sociedade que concretamente se apresenta dividida por elementos por vezes antagonistas e somente por vezes solidários, um lugar onde se pode representar o fato da solidariedade. Nesta dimensão, a norma como medida comum opera como um indicador do estado e identidade de cada indivíduo ou grupo e como instrumento do jogo social. Por fim, a norma seria também a forma moderna do vínculo social, na medida em que ela define as condições do consenso (o qual substitui a função do contrato social na sociedade liberal). Ela serve de referência para uma negociação que ela torna permanente. Ela é também aquilo que a negociação deve corrigir. Instaura uma desigualdade para logo retificá-la. Ela serve para reinserir os privilégios no contexto da normalidade.

A norma designa sempre uma medida  que serve para avaliar o que está conforme a regra e o que a distingue; não está mais ligada à ideia de retidão, esquadro, mas de “mediana” - a  norma torna-se agora o parâmetro para opor normal/anormal, normal/patológico.

Vigiar e punir define as disciplinas como “poder da norma”, desempenhando uma das principais tecnologias de poder das sociedades modernas. A difusão da sociedade disciplinar tem operado segundo três grandes modalidades: 1) inversão funcional das disciplinas, ocorrendo a passagem da disciplina compacta, voltada para funções negativas e mecânicas; 2) proliferação dos mecanismos disciplinares; enquanto os estabelecimentos de disciplina se multiplicam, seus mecanismos têm a tendência de se desinstitucionalizar, sair das fronteiras fechadas onde funcionam e circulam em estado livre; toda instituição torna-se suscetível de utilizar o esquema disciplinar, não se dirigido somente aos que ela pune, mas pondo-se ao serviço do bem de todos, de toda produção socialmente útil; 3) estatização dos mecanismos de disciplina, funcionando através de uma polícia centralizada, com a missão de uma vigilância permanente, exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo visível. A generalização do esquema e das técnicas disciplinares tornou possível a prisão, assim como as escolas, fábricas, casernas, hospitais.

Com isso, Foucault não quer dizer que a sociedade disciplinar seja uma sociedade generalizada de confinamento; ao contrário, sua difusão, longe de cindir ou compartimentar, homogeneíza o espaço social. O importante na ideia de sociedade disciplinar é a própria ideia de sociedade: as disciplinas fazem a sociedade, criam uma linguagem comum entre as instituições.




Fonte:

DELEUZE, Gilles. Foucault. Paris, Ed. Minuit, 1986.
fflch.usp.br/sociologia/temposocial
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro, Ed. Cadernos da PUC/RJ, 1974.
_______. Precisazione sul potere. Risposta ad alcuni critici. Aut-Aut, nº 167/168, 1978.
_______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
_______. Nietzsche, Freud e Marx. Porto, Ed. Anagrama, 1980.
FOUCAULT, Michel. La impossible prision. Debate con Michel Foucault. Barcelona, Ed. Anagrama, 1982.
_______. Structuralism and post-structuralism. An interview with Michel Foucault. Telos, Spring, nº 55, 1983.
_______. Deux essais sur le sujet et le pouvoir. In: DREYFUS, L. H. & RABINOW, P. Michel Foucault. Un parcours
philosophiquec. Paris, Gallimard, 1984.
_______. Vontade de saber. 8ª ed. Rio de Janeiro, Graal, 1985.
_______. Arqueologia do saber. Petrópolis/Rio de Janeiro, Vozes/Forense Universitária, 1986.
_______. Vigiar e punir. 5ª ed. Petrópolis, Vozes, 1987.

sábado, 18 de maio de 2013

Entre o estado natural e a constituição da sociedade



Inicialmente, o conceito de sociedade civil era visto como sinônimo de  Estado, como uma comunidade política enraizada nos princípios da cidadania.

Neste sentido, é possível notar que, até o século XVIII a preocupação comum dos teóricos – como Hobbes, Locke, Rousseau, Ferguson, Smith, Montesquieu e Hume por exemplo – era a de examinar as condições sob as quais os seres humanos poderiam escapar do Estado de natureza e entrar em uma forma contratual de governo baseada na regra da lei, isto é, em uma sociedade civil.

Destarte, um componente essencial desse uso do termo sociedade civil era seu  contraste com um estado de natureza imaginário.

Thomas Hobbes foi, provavelmente, o primeiro dentre os filósofos políticos modernos a colocar a questão das origens da sociedade de uma forma  sistemática. Na verdade, era essencial para seu argumento estabelecer uma  distinção – ou quiçá uma oposição – entre o estado de natureza e a sociedade civil a fim de justificar sua defesa do “Leviatã” como expressão da livre associação entre homens racionais. Na verdade, o próprio Hobbes deixa explícito este ponto quando, no capítulo 17 do “Leviatã”, afirma que o acordo entre os animais é algo natural ao passo que o acordo entre os homens é algo necessariamente artificial.

A formulação do conceito de sociedade civil dada por Hobbes influenciou muito os teóricos seguintes, como Locke e Rousseau.

Locke

No estado de natureza, situação em que segundo a doutrina contratualista o homem ainda não instituiu o governo civil, John Locke entende que os indivíduos são iguais, independentes e estão plenamente livres para decidir suas ações, dispor de seus bens e regular os semelhantes que possam vir a ofender os seus direitos naturais de acordo com seu próprio arbítrio, sendo permitido usar de qualquer meio para salvaguardar suas vidas, liberdade, saúde e posses. No entanto, a vida neste estado natural, implica na incerteza e insegurança da manutenção de próprios direitos, pois o homem é exposto constantemente à violação de sua intimidade e domínios, uma vez que todos são reis absolutos em suas decisões e julgam de acordo com seus valores, sempre em causa própria. Este julgamento, ainda que de forma correta, não dispõe de nenhum poder social instituído que sustente e dê subsídios para execução de sua sentença. O homem, então, renuncia esta condição de liberdade pelo aparente paradoxo da sujeição e submissão ao domínio de outro poder instituído pelo consenso entre os indivíduos, a fim de estabelecer a própria liberdade. Isto somente será possível em uma sociedade politicamente organizada e regulada por uma instituição comum a todos, que supra as carências e deficiências do estado de natureza, garantindo-lhes a conservação da propriedade, finalidade precípua para os homens se unirem em sociedades políticas e se submeterem a um governo, dando-lhes leis claras e conhecidas, um magistrado imparcial e um poder legítimo para fazer valer a execução de sua sentença.

Hobbes

Hobbes esboçou o que seria a vida do homem antes das sociedades organizadas tomando como base que a natureza fez os homens iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito, onde cada indivíduo teria todos os direitos para conservar sua vida. Esse "direito de natureza (jus naturale) é a liberdade que cada homem possuí de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim".

Como o homem é racional, ele projeta fins e devido à igualdade natural de, os fins, muitas vezes, são os mesmos segundo o desejo de muitos homens, o que faz com que eles se tornem inimigos já que é impossível que a mesma coisa seja gozada por ambos. O "estado de natureza" é um estado de guerra permanente, representando a vida antes de um poder instituído e, portanto, está inserido nessa "guerra de todos os homens contra todos os homens", onde "o homem é o lobo do homem". A condição do homem em tal estado, conseqüentemente, era miserável e sua vida era solitária, sórdida, embrutecida e curta, não existindo indústria, ciências, letras e muito menos arte. Entretanto o pior, e constante, temor era o perigo de morte violenta.

Na natureza humana, segundo Hobbes, encontramos três causas principais de discórdia: a competição, a desconfiança e a glória. "A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação". O homem, no estado de natureza, não pode trabalhar, cultivar o espírito e não busca a companhia do outro: quando se pensa que se pode fazer algo de bom ou construir algo, vem alguém e destrói tudo. A desconfiança impera juntamente com os acordos momentâneos. A busca pelos mesmos fins resulta num choque natural e nada é injusto, pois não há lei (somente a lei do mais forte). Se cada homem preservar seu direito a todas as coisas, o que se pode esperar é a morte violenta.

Rousseau

Segundo Rousseau, o homem em seu estado de natureza vivia isolado nas florestas, em total liberdade como seres iguais, não tendo capacidade de se distinguir de outro ser humano – porque ele nem tinha a noção de que existem outros como ele – e essa distinção requer a habilidade de abstração, o que ele ainda não possuía, mantendo perfeito equilíbrio com a natureza e o ambiente, pois sabia reagir e se adaptar à natureza e às suas exigências sobrevivendo com o que ela lhe oferecia.

Nesta fase inicial, considera-se que o homem pensado por Rousseau é algo como o, bom selvagem, no sentido de que ele vivia feliz na simplicidade, mas como um selvagem. Não possuía noções morais como, por exemplo, a de bem ou mal. Estas noções são adquiridas com o processo de civilização.

Ainda no estado de natureza, começa a ocorrer uma aproximação entre os homens pela série de eventos naturais que teriam ocasionado essa aproximação dos seres que eram independentes uns dos outros. Particularmente, foram catástrofes naturais que impulsionaram os seres humanos a viverem juntos e, assim, adquirirem as condições necessárias para a formação da sociedade. Dessa forma, quando os homens começaram a precisar uns dos outros eles uniam-se em forma de bando ou associação livre que durava pouco, apenas o tempo suficiente para que a necessidade que os fizera se juntar acabasse. Nesse momento, começaram a descobrir alguns tipos de armas e juntamente com essa adquiriram também percepção do poder em família – primeira relação de poder natural. Começa-se a estabelecer as primeiras propriedades, que conforme Rousseau foi o maior motivo do surgimento das desigualdades entre os homens. Ele chega a dizer que o primeiro que delimitou o que era seu é o verdadeiro fundador da sociedade civil.






Fonte:

marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronica