quinta-feira, 2 de julho de 2015

Simone de Beauvoir e a filosofia



Em 1857, a sociedade francesa escandalizou-se com a publicação de uma novela dramática de Gustave Flaubert. Tratava-se de um relato ficcional, escrito com crueza e realismo, sobre a esposa de um médico rural, Ema Bovary, que depois de ter praticado adultério se suicidara. Livro que serviu de velada condenação ao comportamento feminino e das forças que se combinavam por desgraçar a mulher. Quase um século depois, em 1949, a mesma sociedade foi novamente abalada, desta vez por um contundente ensaio publicado por uma das mais famosas escritoras do país: Simone de Beauvoir. O título era O Segundo Sexo, livro que desde então correu o mundo e contribuiu definitivamente para a emancipação da mulher contemporânea.

Simone de Beauvoir, todavia, não deve ser entendia como um fenômeno exclusivo da sua época, do século XX, o centênio que mais estendeu cidadania e direitos às mulheres em geral. Ao contrário, era herdeira de uma tradição de engajamento nas causas femininas que se originava dos tempos da Revolução Francesa de 1789, quando mulheres como Theroigine de Méricourt, fundara o clube misto dosAmigos da Lei, em 1790, e Olympe de Gouges, redigira a Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne, de 1791, documento histórico primeiro a reclamar abertamente os direitos iguais para homens e mulheres.

Exigência que foi ainda mais reforçada pela exuberante Flora Tristan, militante socialista, autora de Peregrinações de uma paria, de 1837, e do União Operária, de 1843, defensora da igualdade de operários e operárias, luta que teve continuidade na formação dos Batalhões Femininos da República que saíram às ruas da França na defesa do cumprimento da Lei Ferry, de 1881, que determinava ao acesso das mulheres ao ensino público.

Mesmo com esse ativismo militante, as mulheres francesas chegaram tardiamente à cidadania, apenas consagrada na constituição de 1946. Muito depois das americanas, inglesas, alemãs e russas que alcançaram o direito de voto bem antes delas, ao redor de 1918.

Com total independência de Sartre, Simone dedicou-se por alguns anos do após-guerra a uma intensa e detalhada pesquisa em bibliotecas recolhendo material para o seu ensaio intitulado Le Deuxième Sexe, O Segundo Sexo, dois volumes de mil páginas aparecido em maio de 1949, e que lhe deu projeção quase que universal. A intenção dela era demonstrar que apesar da enorme evolução ocorrida ao longo do século XX, perdurava sobre o sexo feminino uma posição de subordinação e inferioridade que bem poucos aceitavam em denunciar ou condenar. Inclusive as próprias mulheres.

O que lhe valeu, logo que a obra chegou ao público, ser alvo de críticas que explodiram de todos os lados, taxando-a de "sufragete da sexualidade" e de "amazonas existencialista". Ou ainda de ter escrito um "manual de egoísmo erótico" e de ter exposto "audaciosas pornografias" que ostensivamente manifestavam o "egotismo sexual" dela.

Não importava a época ou o período histórico, fosse o antigo ou o moderno, para Simone permanecia a idéia do "eterno feminino", isto é, um conjunto de características imutáveis que eram impostas às mulheres pelo mundo masculino. Elas variavam em atribuir a elas permanentes "pendores naturais" para o matrimônio e a maternidade, até os abertamente ofensivos que as acusavam de desempenharem papéis menos louváveis que punham os homens a perder, fossem como sedutoras, feiticeiras ou bruxas.

Denunciou a existência da distinção feita entre o ser feminino, situação biogenética determinada pela natureza, e a mulher, uma construção idealizada de cada época histórica que, por assim dizer, "escalpe" uma mulher adequada aos ideais e interesses masculinos. Em geral pouco concedendo dela ir além de ser esposa e mãe e nada mais.

Daí o sentido da sua célebre afirmação que correu o mundo desde então: "Não nascemos, mas sim nos tornamos mulher". Para ela era evidente a necessidade de superar o "eterno feminino", visão que engessava a mulher, para a "condição feminina", momento de denúncia que mostrava a situação de opressão que elas viviam há séculos e que apesar dos avanços da sociedade moderna ainda estavam longe de serem abolidos.

Simone de fato, especialmente no primeiro volume do seu ensaio, que é acima de tudo um magnífico estudo sócio-antropológico e histórico da situação feminina através dos tempos, fez um minucioso requisitório de tudo aquilo que ao longo da história assacaram contra elas, frases dos mais diversos escritores, poetas e filósofos, desde os gregos e romanos.
De Hesíodo ("quem se confia a uma mulher, confia-se a um ladrão"), passando pelo bispo Bossuet ("Eva não passava de uma parcela de Adão e de uma espécie de diminutivo"), até os escritores católicos do século XX, demonstrando como, ao longo da história, significativos nomes do universo masculino cerravam fileiras na tarefa de deprecia-las. Até mesmo Jean-Jacques Rousseau, homem dado à mansidão e ao culto à bondade natural, reiterou que a instrução delas "deve ser relativa ao homem. A mulher é feita para ceder ao homem e suportar-lhe as injustiças".

Numa passagem famosa ela então registrou: "Os dois sexos jamais partilharam o mundo da igualdade, e hoje em dia ainda, se bem que a condição evoluiu, a mulher ainda fica muito atrás. Praticamente em nenhum país a sua posição legal é idêntica a do homem, havendo sempre uma desvantagem considerável. Ainda que os seus direitos sejam abstratamente reconhecidos, um longo hábito impede que eles se encontrem nos meios e nas expressões concretas. Economicamente, homens e mulheres constituem praticamente duas castas(...) os primeiros encontram-se em situações mais vantajosas, com os salários mais elevados, com maiores chances sobre suas concorrentes de data mais recente. Além dos poderes concretos que eles possuem, eles encontram-se revestidos de um prestígio que desde a educação infantil mantém a tradição. As atribuições do casamento assomam-se bem mais pesadas para a mulher do que para o homem(...); as servidões da maternidade reduziram-se pelo uso confessado, ou ainda clandestino, do controle dos nascimentos, mas a prática não se expandiu universalmente nem foi rigorosamente aplicada. Os cuidados das crianças e as exigências do fogão ainda são assumidas quase que exclusivamente pela mulher. Ainda que as elas trabalhem nas usinas, nos escritórios, nas faculdades, continuam a considerar que para elas o casamento é uma carreira das mais honoráveis o que as dispensa de qualquer outra participação na vida coletiva."


Fonte:

educaterra.com.br

DE BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: Fatos e Mitos. 8.ed.. Trad. Sergio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. v. 1.

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